domingo, 3 de abril de 2011

Euclides da Cunha

Euclides da Cunha
Nota: Para outros significados, veja Euclides da Cunha (desambiguação).

Nome completo Euclides Rodrigues da Cunha
Nascimento 20 de janeiro de 1866
Cantagalo

Morte 15 de agosto de 1909 (43 anos)
Rio de Janeiro

Nacionalidade Brasileiro

Ocupação Engenheiro, jornalista, professor, ensaísta, historiador, sociólogo e poeta

Magnum opus
Os Sertões

Escola/tradição Pré-modernismo, Modernismo

Filho(s) Mauro, Manoel Afonso, Euclides da Cunha Filho (Quidinho), Solon da Cunha, Eudóxia
Assinatura

Euclides Rodrigues da Cunha[1] (Cantagalo, 20 de janeiro de 1866 — Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1909)[2] foi um escritor, sociólogo, repórter jornalístico, historiador, geógrafo, poeta e engenheiro brasileiro.
Índice
• 1 Biografia
o 1.1 Infância e juventude
o 1.2 Cadete republicano
o 1.3 Ciclo de Canudos
o 1.4 Livro vingador
o 1.5 Ciclo amazônico
o 1.6 Concurso de lógica
o 1.7 Academia Brasileira de Letras
o 1.8 "Tragédia da Piedade"
• 2 Semana Euclidiana
• 3 Cronologia
• 4 Lista de obras
• 5 Adaptações
• 6 Referências
• 7 Bibliografia
• 8 Ligações externas

Biografia
Infância e juventude
Nasceu na fazenda Saudade, em Cantagalo (Rio de Janeiro), filho de Manuel Rodrigues da Cunha Pimenta e Eudóxia Alves Moreira da Cunha. Órfão de mãe desde os 3 anos de idade, Euclides passa a viver em casa de parentes em Teresópolis, São Fidélis e na cidade do Rio de Janeiro. Em 1883 ingressa no Colégio Aquino, onde foi aluno de Benjamin Constant, que muito influenciou sua formação. Em 1885, ingressa na Escola Politécnica e, no ano seguinte, na Escola Militar da Praia Vermelha, onde novamente encontra Benjamin Constant como professor.[3][4]
Cadete republicano
Contagiado pelo ardor republicano dos cadetes e de Benjamin Constant, professor da Escola Militar, durante uma revista às tropas atirou sua espada aos pés do Ministro da Guerra Tomás Coelho. A liderança da Escola tentou atribuir o ato à "fadiga por excesso de estudo", mas Euclides negou-se a aceitar esse veredito e reiterou suas convicções republicanas. Por esse ato de rebeldia, foi julgado pelo Conselho de Disciplina. Em 1888, desligou-se do Exército. Participou ativamente da propaganda republicana no jornal A Província de S. Paulo.
Proclamada a República, foi reintegrado ao Exército recebendo promoção. Ingressou na Escola Superior de Guerra e conseguiu ser primeiro-tenente e bacharel em Matemáticas, Ciências Físicas e Naturais. Casou-se com Ana Emília Ribeiro, filha do major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro, um dos líderes da Proclamação da República. Em 1891, deixou a Escola de Guerra e foi designado coadjuvante de ensino na Escola Militar. Em 1893, praticou na Estrada de Ferro Central do Brasil.[4]
Ciclo de Canudos
Caricatura de Euclides da Cunha feita por Raul Pederneiras (1903)
Ver artigo principal: Guerra de Canudos
Durante a fase inicial da Guerra de Canudos, em 1897, Euclides escreveu dois artigos intitulados A nossa Vendeia que lhe valeram um convite d'O Estado de S. Paulo para presenciar o final do conflito como correspondente de guerra. Isso porque ele considerava, como muitos republicanos à época, que o movimento de Antônio Conselheiro tinha a pretensão de restaurar a monarquia e era apoiado por monarquistas residentes no país e no exterior.[4]
Em Canudos, Euclides adota um jaguncinho chamado Ludgero, a quem se refere em sua Caderneta de Campo [5]. Fraco e doente, o menino é trazido para São Paulo, onde Euclides o entrega a seu amigo, o educador Gabriel Prestes. O menino é rebatizado de Ludgero Prestes.
Livro vingador
Folha de rosto de Os Sertões (1902)
Euclides deixou Canudos quatro dias antes do final da guerra, não chegando a presenciar o desenlace final. Mas conseguiu reunir material para, durante cinco anos, elaborar Os Sertões: campanha de Canudos (1902). Os Sertões foi escrito "nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante",[6] visto que Euclides se encontrava em São José do Rio Pardo liderando a construção de uma ponte metálica. O livro trata da campanha de Canudos (1897), no nordeste da Bahia. Nesta obra, ele rompe por completo com suas ideias anteriores e pré-concebidas, segundo as quais o movimento de Canudos seria uma tentativa de restauração da Monarquia, comandada à distância pelos monarquistas. Percebe que se trata de uma sociedade completamente diferente da litorânea. De certa forma, ele descobre o verdadeiro interior do Brasil, que mostrou ser muito diferente da representação usual que dele se tinha. Euclides se tornou internacionalmente famoso com a publicação desta obra-prima que lhe valeram vagas para a Academia Brasileira de Letras (ABL) e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Divide-se em três partes: A terra, O homem e A luta. Nelas Euclides analisa, respectivamente, as características geológicas, botânicas, zoológicas e hidrográficas da região, a vida, os costumes e a religiosidade sertaneja e, enfim, narra os fatos ocorridos nas quatro expedições enviadas ao arraial liderado por
Antônio Conselheiro[4]

Ciclo amazônico
Em agosto de 1904, Euclides foi nomeado chefe da comissão mista brasileiro-peruana de reconhecimento do Alto Purus, com o objetivo de cooperar para a demarcação de limites entre o Brasil e o Peru. Esta experiência resultou em sua obra póstuma À Margem da História, onde denunciou a exploração dos seringueiros na floresta. Ele partiu de Manaus para as nascentes do rio Purus, chegando adoentado em agosto de 1905. Dando continuidade aos estudos de limites, Euclides escreveu o ensaio Peru versus Bolívia, publicado em 1907. Escreveu, também durante esta viagem, o texto Judas-Ahsverus, considerado um dos textos mais filosófica e poeticamente aprofundados de sua autoria.
Após retornar da Amazônia, Euclides proferiu a conferência Castro Alves e seu tempo, prefaciou os livros Inferno verde, de Alberto Rangel, e Poemas e canções, de Vicente de Carvalho [7]

Concurso de lógica
Visando uma vida mais estável, o que se mostrava impossível na carreira de engenheiro, Euclides prestou concurso para assumir a cadeira de Lógica do Colégio Pedro II. O filósofo Farias Brito foi o primeiro colocado, mas a lei previa que o presidente da república escolheria o catedrático entre os dois primeiros. Graças à intercessão de amigos, Euclides foi nomeado. Depois de sua morte, Farias Brito acabaria ocupando a cátedra em questão [8].

Academia Brasileira de Letras
Foi eleito em 21 de setembro de 1903 para a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Valentim Magalhães, e recebido em 18 de dezembro de 1906 pelo acadêmico Sílvio Romero.

"Tragédia da Piedade"
Sua esposa, mais conhecida como Anna de Assis, tornou-se amante de um jovem tenente, 17 anos mais novo do que ela, chamado Dilermando de Assis. Ainda casada com Euclides, teve dois filhos de Dilermando. Um deles morreu ainda bebê. O outro filho era chamado por Euclides de "a espiga de milho no meio do cafezal", por ser o único louro numa família de morenos. Aparentemente, Euclides aceitou como seu esse menino louro. A traição de Ana desencadeou uma tragédia em 1909, quando Euclides teria entrado na casa de Dilermando, armado, dizendo-se disposto a matar ou morrer. Dilermando reagiu e matou-o. Foi julgado pela justiça militar e absolvido. Entretanto, até hoje o episódio permanece em discussão. Casou-se com Ana. O casamento durou 15 anos.
O corpo de Euclides foi velado na Academia Brasileira de Letras. O médico e escritor Afrânio Peixoto, que assinou o atestado de óbito, mais tarde ocuparia sua cadeira na Academia.[4]
Semana Euclidiana
A cidade de São José do Rio Pardo realiza todos os anos, entre 9 e 15 de agosto, a Semana Euclidiana, em memória do escritor que ali vivia quando escreveu sua obra-prima Os Sertões. São José do Rio Pardo tornou-se uma cidade turística conhecida como O berço de Os Sertões.
Também em São Carlos celebra-se todos os anos, uma Semana Euclidiana, em homenagem ao escritor que morou na cidade entre 1901 e meados de 1903, ali terminando seu trabalho Os Sertões e o publicando em 1902.[13]

Cronologia
• 1866, 20 de janeiro - Nascimento no arraial de Santa Rita do Rio Negro (hoje "Euclidelândia"), município de Cantagalo, então província do Rio de Janeiro, onde vive até os três anos, quando falece sua mãe Eudóxia Moreira da Cunha.
• 1879 - Completa os seus estudos primários (atual Ensino Fundamental) no Colégio Caldeira.
• 1880 - Inicia o curso secundário (atual Ensino Médio). Frequenta os Colégios Anglo-Americano, Vitório da Costa e Menezes Dória.
• 1883 - Aos 18 anos de idade, é matriculado no Colégio Aquino, onde faz exames de Geografia, Francês, Retórica e História.
• 1884 - Publica no Colégio Aquino os primeiros artigos no jornal O Democrata, fundado por ele e seus colegas.
• 1885 - Ingressa na Escola Politécnica para cursar Engenharia, mas é obrigado a desistir por motivos financeiros.
• 1886 - Em 20 de fevereiro, aos 21 anos de idade, assenta praça na Escola Militar da Praia Vermelha, sendo aluno de Benjamin Constant, conhecido positivista.
• 1887 - Colabora na Revista da Família Acadêmica.
• 1888 - O imperador tranca a sua matrícula na Escola Militar da Praia Vermelha por seu ato de protesto durante uma visita do Ministro da Guerra, conselheiro Tomás Coelho, do último gabinete conservador da monarquia. Euclides colabora, com a série "A Pátria e a Dinastia", no jornal A Província de São Paulo.
• 1889 - Retorno à Escola Militar da Praia Vermelha, graças à proclamação da República e ao seu sogro, general Sólon Ribeiro.
• 1891 - Conclui curso na Escola Superior de Guerra.
• 1892 - É promovido a primeiro-tenente de Artilharia e designado para coadjuvante de ensino teórico na Escola Militar.
• 1893 - Nasce Sólon da Cunha, seu primeiro filho. Euclides dirige as obras de fortificações das trincheiras da Saúde durante a Revolta da Armada.
• 1894 - Incidente do jornal O Tempo. Respondendo ao senador cearense João Cordeiro, que desejava penas severas aos adversários políticos, Euclides escreve duas cartas para a Gazeta de Notícias, em que defende o Estado democrático e a não violência. Por isso, passa a ser visto com desconfiança pelos legalistas.
• 1895 - É "exilado" para Campanha, em Minas Gerais, onde constrói e inaugura a estrada de ferro.
• Viaja pelo interior de São Paulo como Superintendente de Obras Públicas do Estado, cargo exercido até 1903.
• Nasce Euclides Filho, seu segundo filho com "Saninha".
• 1896 - Desliga-se do Exército para dedicar-se à engenharia civil. Podendo pedir a Floriano Peixoto um cargo em qualquer esfera do governo, pois tinha sido um fervoroso republicano, Euclides decide o que a lei designa para os recém-formados: estágio na Estrada de Ferro Central do Brasil.
• 1897 - Euclides escreve dois artigos sob o título "A nossa Vendeia", comparando os canudenses aos revoltosos da Vendeia.
• Júlio de Mesquita, do jornal O Estado de S. Paulo, convida-o para acompanhar a campanha de Canudos como correspondente. Nomeado adido ao Estado-Maior do Ministério da Guerra, Euclides segue para Canudos. Cobre a última fase da campanha de Canudos. De 7 de agosto a 1 de outubro fica no sertão, como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo.
• 1898 - Muda-se para São José do Rio Pardo, onde trabalha na construção de uma ponte metálica sobre o Rio Pardo. Começa a escrever Os Sertões, livro no qual trabalharia até 1901. Fragmentos são publicados no artigo "Excerto de um livro inédito".
• 1901 - Nasce seu terceiro filho, Manuel Afonso Albertina, em São José do Rio Pardo. Manuel Afonso seria seu único filho a deixar descendentes. Inaugura-se a Escola Primaria Dr. Lopes Chaves em Taubaté, no interior de São Paulo, projetada por Euclides da Cunha. Muda-se para São Carlos, onde é engenheiro da construção da Escola Paulino Carlos. Ali permanece até meados de 1903.
• 1902 - Publica a obra Os Sertões pela Laemmert & Cia., considerada como precursora da Sociologia e da literatura modernista no Brasil, juntamente com Canaã, de Graça Aranha.
• 1903 - Euclides muda-se para Lorena, onde continua trabalhando como engenheiro. É eleito para a Academia Brasileira de Letras na vaga de Valentim Magalhães. Euclides pede demissão da Superintendência de Obras Públicas de São Paulo. Toma posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
• 1905 - Euclides é nomeado chefe de seção da Comissão de Saneamento de Santos. Percorre Santos e Guarujá. Pede demissão do cargo.
• Realiza viagem heroica pelo rio Purus, na Amazônia, chefiando missão oficial do Ministério das Relações Exteriores que decidiria sobre o litígio de fronteira entre o Brasil e o Peru. Percorre cerca de 6.400 quilômetros de navegação, alguns trechos inclusive a pé.
• 1906 - Euclides volta ao Rio de Janeiro como adido ao gabinete do Barão do Rio Branco e publica o Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus.
• Nasce Mauro, filho de sua mulher com o tenente Dilermando de Assis. O menino vem a falecer uma semana depois.
• 1907 - Publica Contrastes e confrontos, artigos e breves ensaios reunidos por um editor português, e Peru versus Bolívia. Profere a conferência "Castro Alves e seu tempo" no Centro Acadêmico XI de Agosto (São Paulo).
• 1909 - Presta exame para a cátedra de Lógica no Colégio Pedro II. Contudo, não chega a dar muitas aulas.
• 1909, 15 de agosto - Tenta matar o jovem Dilermando de Assis, amante de sua esposa, mas este reage e Euclides da Cunha é morto a tiros, no bairro da Piedade, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Até hoje o episódio, conhecido como Tragédia da Piedade, é alvo de controvérsias.
Lista de obras
1884 - CUNHA, Euclides da. Em viagem: folhetim. O Democrata, Rio de Janeiro, 4 abr. 1884.
1887 - A flor do cárcere. Revista da Família Acadêmica, Rio de Janeiro, 1 (1): 10, nov. 1887.
1888 - A Pátria e a Dinastia. A Província de São Paulo, 22 dez. 1888.
• Críticos. Revista da Família Acadêmica, Rio de Janeiro, 1(7): 209-213, maio 1888.
• Estâncias. Revista da Família Acadêmica, Rio de Janeiro, 1 (10): 366, out. 1888.
• Fazendo versos. Revista da Família Acadêmica, Rio de Janeiro, 1(3): 87-88, jan. 1888.
• Heróis de ontem. Revista da Família Acadêmica, Rio de Janeiro, 1(8): 227-8, jun. 1888.
• Stella. Revista da Família Acadêmica, Rio de Janeiro, 1(9): 265, jul. 1888.
1889 - Atos e palavras. A Província de São Paulo, 10-12, 15, 16, 18, 23, 24 jan. 1889.
• Da corte. A Província de São Paulo, maio 1889.
• Homens de hoje. A Província de São Paulo, 22 e 28 jun. 1889.
1890 - Divagando. Democracia, Rio de Janeiro, 26 abr. 1890.
• Divagando. Democracia, 24 maio 1890.
• Divagando. Democracia, 2 jun. 1890.
• O ex-imperador. Democracia, 3 mar. 1890.
• Sejamos francos. Democracia, Rio de Janeiro, 18 mar. 1890.
1892 - Da penumbra. O Estado de São Paulo, 15, 17 e 19 mar. 1892.
• Dia a dia. O Estado de São Paulo, 29 e 31 mar. 1892.
• Dia a dia. O Estado de São Paulo, 1-3, 5-8, 10, 13, 17, 20, 24 e 27 abr. 1892.
• Dia a dia. O Estado de São Paulo, 1, 8, 11, 15, 18 e 22 maio 1892.
• Dia a dia. O Estado de São Paulo, 5, 12, 22 e 29 jun. 1892.
• Dia a dia. O Estado de São Paulo, 3 e 6 jul. 1892.
• Instituto Politécnico. O Estado de São Paulo, 24 maio 1892.
• Instituto Politécnico. O Estado de São Paulo, 1o. jun. 1892.
1894 - A dinamite. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 20 fev. 1894.
1897 - A nossa Vendeia. O Estado de São Paulo, 14 mar. 1897 e 17 jul. 1897.
• Anchieta. O Estado de São Paulo, 9 jun. 1897.
• Canudos: diário de uma expedição. O Estado de São Paulo, 18 e 22-29 ago. 1897.
• Canudos: diário de uma expedição. O Estado de São Paulo, 1, 3, 9, 12, 14, 21, 26 e 27 set. 1897.
• Canudos: diário de uma expedição. O Estado de São Paulo, 11-13, 20, 21 e 25 out. 1897.
• Distribuição dos vegetais no Estado de São Paulo. O Estado de São Paulo, 4 mar. 1897.
• Estudos de higiene: crítica ao livro do mesmo título do Doutor Torquato Tapajós. O Estado de S. Paulo, 4, 9 e 14 maio 1897.
• O Argentaurum. O Estado de S. Paulo, 2 jul. 1897.
• O batalhão de São Paulo. O Estado de S. Paulo, 26 out. 1897.
1898 - O "Brasil mental". O Estado de S. Paulo, 10-12 jul. 1898.
• Excerto de um livro inédito. O Estado de S. Paulo, 19 jan. 1898.
• Fronteira sul do Amazonas. O Estado de S. Paulo, 14 nov. 1898.
1899 - A guerra no sertão [fragmento]. Revista Brasileira, Rio de Janeiro, 19 (92/93): 270-281, ago./set. 1899.
1900 - As secas do Norte. O Estado de S. Paulo, 29, 30 out. 1900 e 1o. nov. 1900.
• O IV Centenário do Brasil. O Rio Pardo, São José do Rio Pardo, 6 maio 1900.
1901 - O Brasil no século XIX. O Estado de S. Paulo, 31 jan. 1901.
1902 - Os Sertões: campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1902. vii + 632 p. il.
• Ao longo de uma estrada. O Estado de São Paulo, São Paulo, 18 jan. 1902.
• Olhemos para os sertões. O Estado de São Paulo, São Paulo, 18 e 19 mar. 1902.
1903 - Os Sertões: campanha de Canudos. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903. vii + 618 p. il.
• Viajando… O Estado de São Paulo, São Paulo, 8 set. 1903.
• À margem de um livro. O Estado de São Paulo, São Paulo, 6 e 7 nov. 1903.
• Os batedores da Inconfidência. O Estado de São Paulo, São Paulo, 21 abr. 1903.
• Posse no Instituto Histórico. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 66 (2): 288-93, 1903.
1904 - A arcádia da Alemanha. O Estado de São Paulo, 6 ago. 1904.
• Civilização. O Estado de São Paulo, 10 jul. 1904.
• Conflito inevitável. O Estado de São Paulo, 14 maio 1904.
• Contra os caucheiros. O Estado de São Paulo, 22 maio 1904.
• Entre as ruínas. O Paiz, Rio de Janeiro, 15 ago. 1904.
• Entre o Madeira e o Javari. O Estado de São Paulo, 29 maio 1904.
• Heróis e bandidos. O Paiz, Rio de Janeiro, 11, jun. 1904.
• O marechal de ferro. O Estado de São Paulo, 29 jun. 1904.
• Um velho problema. O Estado de São Paulo, 1o. maio 1904.
• Uma comédia histórica. O Estado de São Paulo, 25 jun. 1904.
• Vida das estátuas. O Paiz, Rio de Janeiro, 21 jul. 1904.
1905 - Os Sertões: campanha de Canudos. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Laemmert, 1905, vii + 618 p. il.
• Rio abandonado: o Purus. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 68 (2): 337-89, 1905.
• Os trabalhos da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus [Entrevista]. Jornal do Commercio, Manaus, 29 out. 1905.
1906 - Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus: 1904-1905. notas do comissariado brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1906. 76 p. mapas.
• Da Independência à República. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 69 (2): 7-71, 1906.
• Os nossos "autógrafos". Renascença, Rio de Janeiro, 3 (34): 276, dez. 1906.
1907 - Contrastes e confrontos. Pref. José Pereira de Sampaio (Bruno). Porto: Empresa Literária e Tpográfica, 1907. 257 p.
• Contrastes e confrontos. 2. ed. ampliada. Estudo de Araripe Júnior. Porto: Empresa Literária e Tipográfica, 1907. 384 p. il.
• Peru 'versus' Bolívia. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1907. 201 p. il.
• Castro Alves e seu tempo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 3 dez. 1907.
• Entre os seringais. Kosmos, Rio de Janeiro, 3 (1), jan. 1906.
• O valor de um símbolo. O Estado de São Paulo, 23 dez. 1907.
1908
• La cuestión de limites entre Bolívia y el Peru. trad. Eliosoro Vilazón. Buenos Aires: Cia Sud-Americana de Billetes de Banco, 1908.
• Martín Garcia. Buenos Aires: Cori Hermanos, 1908. 113 p.
• Numa volta do passado. Kosmos, Rio de Janeiro, 5 (10), out. 1908.
• Parecer acerca dos trabalhos do Sr. Fernando A. Gorette. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 71 (2): 540-543, 1908.
• A última visita. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 30 set. e 1o. out. 1908.
1909 - Amazônia. Revista Americana, Rio de Janeiro, 1 (2): 178-188, nov. 1909.
• A verdade e o erro: prova escrita do concurso de lógica do Ginásio Nacional [17 maio 1909]. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 2 jun. 1909.
• Um atlas do Brasil: último trabalho do Dr. Euclides da Cunha. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 29 ago. 1909.
Obras póstumas -À margem da história''. Porto: Chardron, Lello, 1909. 390 p. il.
1975 - Caderneta de campo. Introd., notas e coment. por Olímpio de Souza Andrade. São Paulo, Cultrix; Brasília, INL, 1975. xxxii, 197 p. il.
• Canudos: diário de uma expedição. Introd. de Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939. xxv, 186 p. il.
• Ondas. Coleção de poesias escritas por Euclides da Cunha em 1883, publicadas em 1966, na "Obra Completa de Euclides da Cunha", pela Editora Aguilar, e em volume autônomo em 2005, pela Editora Martin Claret, com prefácio de Márcio José Lauria.
Adaptações
Filmes, documentários e séries
• DESEJO. Direção de Wolf Maya (direção geral) e Denise Saraceni; Euclides da Cunha interpretado por Tarcísio Meira. Rio de Janeiro: Som Livre, 2005. Color. 1 DVD. minissérie em 17 capítulos (657 min.).
• EPOPÉIA EUCLYDEACREANA. Direção de Rodrigo Neves, produzido por Charlene Lima, narrado por Caros Vereza, fotografia de Celso Kava. São Paulo: Cultura Marcas, 2006. Color. 1 DVD.[14]
• OS SERTÕES. Direção de Cristina Fonseca. São Paulo: TV Cultura de São Paulo, 1995. Color. 1 filme (67 min.) (Série Leituras do Brasil).
• EUCLIDES DA CUNHA. Direção de Humberto Mauro. 1944. P&B. (14 min.).
• GUERRA DE CANUDOS. Direção de Sérgio Rezende. 1 DVD (170 min.).
• DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL. Direção de Glauber Rocha, Walter Lima Júnior. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 1964. P&B. 1 fita de VHS (125 min.).
• A MATADEIRA. Direção e roteiro por Jorge Furtado. 1994. Color. 1 filme (16 min.).
• OS SERTÕES: ano 100. Direção Tâmis Parron. São Paulo: SPVD; CCS; USP, 2002. Color. VHS (28 min.)
Ópera
• LE SERTON: Grand opera brésilien en 4 actes sur L'Epopée de Canudos. Poeme et musique Fernand Joutex. Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Belo Horizonte, 1953. 59 p.
Peça teatral - OS SERTÕES. Direção de José Celso Martinez Corrêa. São Paulo, Teatro Oficina, 2002-07.
Livros baseados em Os Sertões
• A BRAZILIAN MYSTIC: being the life and miracles of Antonio Conselheiro. R. B. Cunninghame Graham. Londres, 1919
• LE MAGE DU SERTÃO. Lucien Marchal. Paris: Librairie Plon, 1952. Traduzido para o inglês sob o título The Sage of Canudos.
• ÍTÉLET CANUDOSBAN. Sándor Márai, 1968. Traduzido para o português sob o título Veredicto em Canudos. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
• LA GUERRA DEL FIN DEL MUNDO. Mario Vargas Llosa, 1981
Referências
1. ↑ na ortografia original: Euclydes e sem o errôneo antenome Pimenta, pois não consta dos documentos assinados pelo escritor.
2. ↑ Euclides da Cunha - Cronologia. ABL - Euclides da Cunha. Página visitada em 15/08/2009.
3. ↑ CUNHA, Euclides da. Diário de uma Expedição, org. Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
4. ↑ a b c d e RABELLO, Sylvio. Euclides da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
5. ↑ CUNHA, Euclides da. Caderneta de campo, São Paulo, Cultrix, 1975.
6. ↑ CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos, nota preliminar
7. ↑ VENANCIO FILHO, Francisco. Estudo biográfico. In: Euclides da Cunha: ensaio biobibliográfico, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1931.
8. ↑ PONTES, Eloy. A vida dramática de Euclides da Cunha, Rio de Janeiro, José Olympio, 1938. pp. 267-293.
9. ↑ ASSIS, Dilermando de. A tragédia da Piedade: mentiras e calúnias de A vida dramática de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1951.
10. ↑ TOSTES, Joel Bicalho; BRANDÃO, Adelino. Águas de amargura: o drama de Euclides da Cunha e Ana. 3. ed. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1990.
11. ↑ ANDRADE, Jéferson; ASSIS, Judith. Anna de Assis: história de um trágico amor. 4. ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1987.
12. ↑ CIBELA, Ângelo. Um Nome. Uma Vida. Uma Obra. Dilermando de Assis. Rio de Janeiro: Tip. Duarte, Neves & Cia, 1946.
13. ↑ http://www.releituras.com/edacunha_bio.asp
14. ↑ Epopeia Euclydeacreana, documentário baseado na obra "À Margem da História", e cartas e documentos do Itamaraty sobre a viagem de Euclides da Cunha pelo Rio Purus em 1905.
Bibliografia
• ANDRADE, Olímpio de Sousa. História e interpretação de 'Os Sertões'. 3. ed. rev. e aum. São Paulo: EDART, 1966.
• BRANDÃO, Adelino. Paraíso perdido: Euclides da Cunha - vida e obra. São Paulo: IBRASA, 1996. 442 p. il.
• CUNHA, Euclides da. Ondas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005, 162 p.
• CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Martin Claret, 2002.
• PONTES, Eloy. A vida dramatica de Euclydes da Cunha. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. 342 p. il.
• RABELLO, Sylvio. Euclides da Cunha. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. 362 p.
• VENÂNCIO FILHO, Francisco. A gloria de Euclydes da Cunha. São Paulo: Nacional, 1940. xvi, 323 p. il.
• VENTURA, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 348 p. il.
Ligações externas
• www.euclidesdacunha.org.br (em português)
• Vida e obra de Euclides da Cunha, autor de Os Sertões.
• Casa de Cultura Euclides da Cunha, localizada em São José do Rio Pardo e promotora da Semana Euclidiana. (em português)
• NUNES NETO, Miguel Rodrigues;LOPES, Antonio Fernando Megale. O homem que matou um deus. Brasília: Prática Jurídica, ano VII, nº 88, 2009, pp. 36-43 (em português)
• Especiais do jornal O Estado de S.Paulo sobre o escritor













A LEITURA DE "OS SERTÕES", HOJE
ALFREDO BOSI
EUCLIDES DA CUNHA: VIDA E OBRA
EUCLIDES RODRIGUES PIMENTA DA CUNHA nasceu aos 20 de janeiro de 1866, em Cantagalo, na então Província do Rio de Janeiro. A sua família, de extração lusco-baiana, aí se instalara, nos meados do século XIX, atraída pela miragem de riqueza fácil que o café parecia oferecer a todo o Vale do Paraíba.
Na verdade, os seus não conheceriam a abastança dos barões do café; antes, partilharam o quinhão de uma vida mediana e laboriosa de pequenos fazendeiros; e laboriosa e mediana seria também a vida toda de Euclides: militar, engenheiro, topógrafo, jornalista, escritor e, por fim, em brevíssimo espaço de tempo, professor.
Fez os estudos secundários em vários colégios entre os quais o "Carneiro Ribeiro", de Salvador. Na adolescência escreveu alguns poemas, ainda românticos, de um romantismo liberal afim ao espírito e à linguagem de Victor Hugo, cujo ideário se cifrava no culto do Progresso e da Liberdade. E Euclides fez-se muito cedo abolicionista e republicano ardente. O pendor para os estudos matemáticos levou-o a eleger como curso superior a Engenharia, entrando primeiro na Escola Politécnica, que mal freqüentou, e, logo depois, na Escola Militar da Praia Vermelha. Neste centro difusor da mentalidade positivista educa-se o jovem Euclides para um tipo de pensamento que atava no mesmo feixe de valores a Ciência e o republicanismo. Seu mestre de maior prestígio, Benjamin Constant, discípulo da filosofia de Auguste Comte, viria a ser um dos co-autores intelectuais do movimento militar que depôs o Imperador em 1889. O cadete Euclides incorporou com vigor os traços fatalistas da ciência européia do tempo e, apesar dos matizes que o contacto com a realidade iria ensinar-lhe mais tarde, foram esses os vincos mentais que o marcariam de forma duradoura.
Ao lado da influência de Comte, o evolucionismo de Darwin e de Spencer o dispôs a aceitar, com excessiva confiança, as "leis" sobre os caracteres morais das raças que tanto acabariam pesando na elaboração de Os Sertões.
De Euclides republicano virulento guarda-se o episódio em que desfeiteou, perante a tropa formada dos colegas, o Ministro da Guerra do Império, lançando ao chão o próprio sabre. O Ministro, um civil, não granjeara o apoio dos cadetes, já em crescente animosidade contra D. Pedro II. Expulso da Escola, excluído do Exército em novembro de 1888, partiu para São Paulo onde o acolheu com entusiasmo o grupo republicano já, a essa altura, apoiado por boa parte dos senhores do café, promotores da imigração. Euclides passou a escrever no jornal A Província de São Paulo (depois de 89, O Estado de São Paulo) artigos de cunho ideológico: um pouco de Comte, um pouco de Spencer, muito de republicanismo militar. Um desses artigos terminava assim:
"Porque sabemos que a República se fará hoje ou amanhã fatalmente, como um corolário de nosso desenvolvimento; hoje calmamente, cientificamente, pela lógica, pela convicção; amanhã...
Amanhã será preciso quebrar a espada do Sr. Conde d'Eu."
Proclamada a República, Euclides pôde reintegrar-se nas fileiras do Exército, cursando então Artilharia e Engenharia, na Escola Superior de Guerra. Casa-se em agosto de 1890.
Nos anos seguintes dedicou-se aos estudos brasileiros de que foi, até à morte, um cultor assíduo. Na vida política, aproximou-se do grupo que preparou o contragolpe de Floriano Peixoto, aos 23 de novembro de l891,e que visava a restabelecer as garantias parlamentares após a dissolução do Congresso decretada pelo Marechal Deodoro aos 3 de novembro do mesmo ano.
Em 1892, escreve alguns artigos para O Estado de São Paulo, defendendo as medidas políticas de Floriano. Este manda-o chamar e dá-lhe a liberdade de escolher o cargo que bem entendesse. Euclides, "na época do pleno despencar dos governadores estaduais", como ele próprio refere em carta a um amigo, pede apenas "o que previa a lei para os engenheiros recém-formados: um ano de prática na Estrada de Ferro Central do Brasil." Aí, de fato, estagiou alguns meses, transferindo-se depois para a Diretoria de Obras Militares, onde fiscalizou os trabalhos de defesa contra as ameaças da Esquadra fundeada na baía de Guanabara (1893).
Em março de 1894, dão-lhe a incumbência de dirigir a construção de um quartel na cidade mineira de Campanha. Segundo alguns biógrafos, esse "exílio" teria sido planejado pelo Governo Floriano como forma de apartar do Rio o inquieto tenente que começara a agredir, pelo jornal, um senador governista, adepto da execução sumária dos réus políticos...
A essa altura, Euclides entrega-se com fervor aos estudos brasileiros, passando da Geologia à Botânica, da Toponímia à Etnologia: o acervo de conhecimentos que então carreou formaria a base científica de Os Sertões, obra redigida alguns anos mais tarde.
Desvinculando-se da carreira militar, passa a viver como engenheiro civil junto à Superintendência de Obras Públicas em São Paulo (1896).
Um fato veio alterar a rotina dessa vida de estudioso e funcionário exemplar. Os jornais de 7 de março de 1897 noticiaram o desbarato de uma tropa formada por 1300 soldados em luta com jagunços entrincheirados em Canudos, vilarejo do sertão norte da Bahia. Junto à nova da derrota vinha a da morte do Coronel Moreira César, líder da ala florianista do Exército.
O episódio foi logo interpretado como primeira fase de uma luta armada em prol da restauração do regime monárquico. Embora esse modo de entender fosse objetivamente um absurdo, políticos voltados somente para problemas partidários e ignorantes da realidade sertaneja, fantasiaram conjuras anti-republicanas. As vítimas mais próximas foram diários saudosistas dentre os quais o Comércio de São Paulo, mantido por dois intelectuais refinados, absolutamente distantes de qualquer ligação com os jagunços, Eduardo Prado e Afonso Arinos...
Euclides, republicano da primeira hora, aceitou, no principio, a interpretação dos jornais. Em dois artigos publicados em O Estado de São Paulo, sob o titulo geral de "A Nossa Vendéia" (14.3 e 14.7.97), também aproxima as escaramuças de Canudos e uma crise política que estaria envolvendo o regime e o Exército.
O Estado de São Paulo convida-o a acompanhar, como correspondente, os sucessos de Canudos. Euclides partirá para a Bahia em 4 de agosto de 1897 e enviará as suas notas de repórter até o inicio de outubro do mesmo ano. O que colheu nesses dois meses de observação viria a publicar-se postumamente sob o titulo de Canudos. Diário de uma Expedição, que constitui a matriz de Os Sertões.
O contacto direto com as condições físicas e morais do sertanejo acabou por desmentir o pressuposto de que Canudos era um foco monarquista. Desfeito o equivoco, o escritor pôs-se a examinar com olhos novos aquela sociedade, a um tempo rude e complexa, cuja interpretação ele proporia em Os Sertões em termos de mestiçagem e de influência do meio. Igualmente, junto ao arraial do Canudos conheceria o assombro ante a resistência heróica dos sertanejos a tropas tão mais numerosas e mais bem equipadas.
Euclides ficou em Canudos até o fim da campanha, assistiu ao massacre dos jagunços e percebeu, com todos os sentidos, o absurdo daquela luta desigual e injusta cujo desenlace seria comemorado no Rio e em São Paulo como uma' vitória da República.
Voltando a São Paulo, não tardou em pôr mãos à redação da sua obra máxima. Em 19 de janeiro de 1898 divulga, pelo Estado, os "Excertos de um Livro Inédito", amostra do estilo que sela o livro todo. Este só veio a ser composto na integra em São José 'do Rio Pardo, cidade onde o escritor dirigiu, entre 1898 e 1901, as obras de reconstrução da ponte sobre o Rio Pardo.
Foram anos de estudo intenso e variado. Ao lado das ciências naturais, da Geografia e História brasileiras, Euclides lê clássicos portugueses cuja. sintaxe e cujo vocabulário deixariam não poucos sinais em Os Sertões.
Mas foram também anos de interesse pelas ideologias renovadoras que já encontravam eco em um Brasil em fase inicial de industrialização. Sabe-se que Euclides se achegou ao grupo socialista de são José do Rio Pardo, constituído pela ação inteligente de amigos seus, Francisco Escobar e José Honório de Sylos, e pelo fervor de alguns imigrantes italianos. Destes é de justiça lembrar o nome de Pascoal Artese, fundador do jornal O Proletário cujo primeiro número saiu em dezembro de 1901.
Ao que parece, o escritor teria sido antes um observador simpático do que um militante convicto. Os testemunhos são contraditórios (1): há quem o diga omisso e ausente; mas há quem o aponte como fundador do clube socialista local. O que importa, porém, é a assimilação de critérios progressistas na gênese da obra de Euclides, principalmente nos seus últimos escritos, dentre os quais é texto exemplar "Um velho problema", de 1904, página candente de repúdio à exploração da classe operária.
Em Os Sertões, a interpretação ainda sofre do peso excessivo dado aos fatores do meio físico e da mestiçagem; e é a partir deles que aí se faz a crítica da política federal e do seu republicanismo vazio.
Em maio de 1901, Euclides despede-se de são José do Rio Pardo. O livro, quase pronto, seria ainda polido na linguagem vindo a publicar-se só em 1902. Mas a consagração foi imediata e valeu ao autor artigos elogiosos dos maiores críticos da época (José Verissimo, Araripe Jr.) e a eleição para o Instituto Histórico e Geográfico e para a Academia Brasileira de Letras, com votos de Machado de Assis e do Barão do Rio Branco.
O escritor continuou a trabalhar como engenheiro e a escrever sobre nossos problemas, compondo, em 1904, vários artigos, reunidos mais tarde em Contrastes e Confrontos. Em 1905, o Barão do Rio Branco designa-o para a chefia da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus. Passa na Amazônia todo esse ano: fruto da viagem é o Relatório sobre o Alto Purus, publicado em 1906. No ano seguinte redige, a propósito de uma questão de fronteiras, Peru versus Bolívia.
Em 1909, como desejasse ingressar no magistério oficial, fez concurso para a Cadeira de Lógica do Colégio Pedro II, concorrendo com o filósofo Farias Brito. Este, apesar de ter feito provas superiores, é preterido. Euclides assume as aulas, mas por pouco tempo. Em um desforço pessoal no qual se empenhara por motivos de honra, é assassinado. Contava, ao morrer, quarenta e três anos de idade.
"OS SERTÕES": ANALISE E INTERPRETAÇÃO DAS IDÉIA
Os Sertões nasceram como história da campanha de Canudos - é o que nos diz Euclides na "Nota Preliminar" do livro.
Mas, finda a luta, o escritor, que a anotara com minúcias de repórter, resolveu dar à longa narração o caráter de exemplo de tendências conflituosas da nossa realidade.
Há, portanto, na obra, dois grandes planos: o histórico e o interpretativo.
Ao plano histórico responde a parte final do livro: "A Luta". Ao plano interpretativo, as duas primeiras secções: "A Terra" e "O Homem".
A ordem não é gratuita: vincula-se à cultura do autor e de seu tempo, determinista. Os fundamentos de toda a realidade repousam na matéria; por sua vez, a vida, manifestação orgânica da matéria, supõe a matéria inorgânica. De onde, a necessidade de começar pelo estudo da infra-estrutura geológica, passando depois aos acidentes do solo, às variações do clima para estender-se às formas do ser vivo: a flora, a fauna e, último elo da cadeia, o homem.
Obedecendo à seqüência, Euclides procurou traçar, nas duas secções iniciais de Os Sertões, o quadro evolutivo do Brasil sertanejo que, começando pelo reconhecimento da estrutura do solo e do clima, alcançasse a psicologia de Antônio Conselheiro e dos seus seguidores.
O processo de raciocínio é, aqui, homológico: supõe semelhança de categorias nos vários níveis da realidade. Assim, por exemplo, como há espécies diferentes de plantas e de animais, também deve haver espécies diferentes de homens: as raças (2).
Entende-se a tônica posta no fator racial em Os Sertões quando se remete o modo de pensar que enforma o livro à mente positivista que permeou a cultura de Euclides, engenheiro e militar na segunda metade do século XIX em um país culturalmente preso à França.
As raças, porém, não se configuram como realidades estáticas. As "espécies" vivem em um determinado meio físico e convivem com outras espécies. Ambas as variáveis são consideradas por Euclides: os tipos brasileiros, como o sertanejo e o gaúcho, resultaram não só da mestiçagem mas também da interação entre homem e natureza, homem e sociedade. Continua a operar o paralelo entre as séries, especialmente entre as mais próximas: as espécies de plantas e de animais devem a sua anatomia e fisiologia tanto à herança quanto a seculares esforços de adaptação ao meio e aos outros organismos.
A simetria, que se dá por provada no nível genético e no nível mesológico, estendendo-se ao social. E os caracteres raciais ora confirmam-se ora se alteram no curso histórico da luta pela vida. Nessa altura, o quadro torna-se mais móvel. Há forças em tensão, há possibilidades de triunfo para espécies bem dotadas, ou de aniquilamento para as menos capazes.
Quais seriam as raças mais resistentes aos contrastes do clima e do solo brasileiro? - esta é a pergunta julgada pertinente por Euclides; e, para respondê-la, recorre aos antropólogos do seu tempo. Os que conhece e cita, um Broca e um Gumplowicz, por exemplo, são unânimes em afirmar a superioridade da raça branca, mais forte e mais ajustada à civilização do que a negra ou a "vermelha" (como então se dizia, supondo-se que o índio americano fosse autóctone, sem relação com a raça amarela).
A crença na existência de raças superiores traz consigo a idéia de que a mestiçagem é um risco, pois o fruto pode. herdar tanto os traços "positivos" como os "negativos" das espécies que se cruzaram.
Euclides admite, no esquema geral de Os Sertões, que. esses traços são transmitidos de geração a geração. Mas, e este é seu mérito, procura atentar também para os fatores diferenciais do processo, e dá relevo constante ao clima, ao solo, às condições de vida e ao regime de trabalho em que se deu a mestiçagem.
As suas conclusões são conhecidas:
"Não temos unidade de raça".
"O português é o fator aristocrático da nossa gens".
"A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial".
A mestiçagem extremada é um retrocesso".
"O mestiço... é, quase sempre, um desequilibrado".
"... o mestiço - mulato, mameluco ou cafuz - menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores" (3)
O cruzamento do português com o índio teria dado, porém, resultados díspares conforme o meio em que se fez: mais feliz no Sul, onde o clima regular, o solo, em geral fértil, e a direção dos rios propiciaram a livre expansão do indivíduo - o bandeirante, o peão; menos feliz no Nordeste, onde os contrastes violentos de seca e chuva e as vastas extensões semi-áridas foram responsáveis pela constituição instável do sertanejo e pelo seu ritmo de vida carente de equilíbrio.
Dai ao retrato psicológico e ético vai um passo. Que Euclides dá sem hesitar. O sertanejo é foco de contrastes: valente, mas supersticioso; forte, mas abúlico; generoso, mas fanático. Estão lançadas as bases para a interpretação do fenômeno de Canudos, encontro histórico de raças e meios diversos: o sertanejo rebelde, mas impotente, contra o homem do litoral, branco ou, se mestiço, "condenado à civilização".
A vida de Antônio Vicente Mendes Maciel e a história do arraial formavam para Euclides peças de um só conjunto, enquanto expressões da religiosidade sertaneja. O Conselheiro, cuja biografia até Canudos poderia ser apenas a de um infeliz mas vulgar foragido da lei, ou a de um louco perdido em seus delírios proféticos, assume, a partir da fundação do arraial em pleno sertão, o papel de homem--síntese de uma realidade social e religiosa, a condição do sertanejo pobre. Ele é um marginal, como boa parte da plebe que o rodeia. Ele desconfia das autoridades, mas nada leva os seus companheiros a crer nesse poder distante e hostil. Ele espera um futuro melhor que há de vir mediante a ajuda sobrenatural, e outra esperança não podem alimentar os seus jagunços. O Conselheiro é o homem da Providência e, como tal, preenche uma função na economia espiritual do sertão.
A compreensão do messianismo foi uma conquista no roteiro intelectual de Euclides que, repórter de O Estado, ainda partilhava com os bem-pensantes da idéia de uma Canudos monarquista articulada com políticos reacionários ou com os revoltosos da Marinha. Os Sertões descartam essa crença, nascida da mais crassa ignorância da mentalidade sertaneja que a obra quer, confessadamente, interpretar. Mas já sabemos o quanto a interpretação se achava presa a um sistema de pensar fatalista. Entre o observador atento e a cidadela-mundéu dos jagunços havia mais do que um simples olhar desprevenido: a fixação do homem e o relato da luta não se fariam sem a tela das mediações ideológica e literária.
O Conselheiro será, sempre, o fruto mórbido de uma cultura propensa à desordem e ao crime. Como a sociedade que o produziu, ele tende a reviver esquemas regressivos de conduta e de linguagem:
"É natural que estas camadas profundas de nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária - Antônio Conselheiro... As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado, dos aspectos predominantes de mal social gravíssimo. Por isso o infeliz, .destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a História como poderia ter ido para o hospício. Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais - vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos na multidão, mas enérgicos e definidos, quando resumidos numa' individualidade" (...) É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências 'pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade..."
Sempre a noção do indivíduo como condensação extrema do meio social que, por sua vez, se explicara a partir da raça e das condições geográficas. No texto citado, homem e comunidade são vistos como desequilibrados: afeta-os a insânia mística, a paranóia messiânica, numa palavra, a aberração em face dos modos "civilizados" de convivência. Atua em Euclides a tábua de valores da' sua cultura que, para qualificar os aspectos diferentes, recorria à pecha de "anormalidade". O que não é igual a nós traz o estigma da loucura: é o raciocínio que subjaz a esse modo de ver o outro.
O abuso dessa psiquiatria positivista, que a pena sutil de Machado de Assis já expusera ao ridículo no Alienista, casa-se bem com os preconceitos acerca de raças superiores e inferiores e com o alarme ante os riscos da mestiçagem. A ideologia dos fins do século XIX parece descer por um declive cético oposto ao progressismo confiante dos primeiros republicanos, ainda românticos e liberais. Para estes, a ciência caminharia sempre a serviço de uma Humanidade livre: é ler Hugo, Tobias Barreto, Castro Alves, o jovem Rui Barbosa. Mas a Biologia do tempo detinha-se cada vez mais na descrição miúda de uma Natureza indiferente ao homem; e a Antropologia interpretava o destino deste como luta selvagem pela sobrevivência, da qual emergiriam as raças e os indivíduos mais fortes. Trata-se de um conhecimento que nada promete: apenas reconhece as estruturas da vida orgânica e das forças ambientais. ~ uma ciência que vai crescendo seguida da própria sombra ideológica: a consciência infeliz da cultura na época áurea do colonialismo europeu.
Mas a tensão entre esse saber, considerado natural e científico, e um julgar, de natureza ética mais ampla, está presente n'Os Sertões, obra que quer explicar a luta contra Canudos e, ao mesmo tempo, a denuncia:
"A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável "força motriz da História" que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.
Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo" (Nota Preliminar).
"OS SERTÕES": O TRABALHO DA LINGUAGEM
Passando do nível da estrutura de pensamento para o dos processos de linguagem, vê-se quanto a mediação literária se compôs para figurar a ideologia do inapelável.
O estilo da obra organiza-se mediante alguns poucos processos retóricos: em primeiro plano, a intensificação e a antinomia.
Por intensificação entende-se aqui o uso de termos e de expressões que potenciam a apreensão do objeto pela palavra. Boa parte do "gongorismo" verbal atribuído a Euclides deve-se reportar a seu vezo de agigantar o tamanho, agravar o peso, acelerar o ritmo, alongar as distâncias, acentuar as diferenças, exasperar as tensões, radicalizar as tendências: em suma, ver nas coisas todas a sua face desmedida e extrema.

Alguns exemplos:
"Desce a noite, sem crepúsculo, de chofre - um salto da treva por cima de uma franja vermelha do poente - e todo esse calor se perde no espaço numa irradiação intensíssima, caindo a temperatura de súbito, numa queda única, assombrosa..."
"Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares."
"O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente aquecidas, parecendo varar através de um prisma desmedido e intáctil... Então, ao norte da Canabrava, numa enorme expansão dos planos perturbados, via-se um ondular estonteador, estranho palpitar de vagas longínquas."
"E entrechocadas umas e outras, num desencadear de tufões violentos, altejam-se, retalhadas de raios, nublando em minutos o firmamento todo, desfazendo-se logo depois em aguaceiros fortes sobre os desertos recrestados."
"Atrofiam as raízes mestras batendo contra o solo impenetrável e substituem-nas pela expansão irradiante das radículas secundárias, ganglionando-as em tubérculos túmidos de seiva."
"Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de chuvas tombam grossas, espaçadamente, sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro diluviano..."
"Espancado pelas canículas, fustigado dos sóis, roído dos enxurros, torturado pelos ventos, o vegetal parece derrear-se aos embates desses elementos antagônicos e abroquelar-se daquele modo, invisível, no solo sobre que alevanta apenas os mais altos renovos da fronde majestosa."
"Aquela criança era, de certo, um aleijão estupendo. (...) Repontava, bandido feito, à tona da luta, tendo sobre os ombros pequeninos em que se um legado formidável de erros. Nove anos de vida adensavam três séculos de barbaria."
À semântica da percepção exacerbada corresponde um largo uso de superlativos: "situação crudelíssima", "disposição singularíssima", "graus anormalíssimos", "forma atraentíssima", "aspectos anormalíssimos", "irradiação intensíssima , "penosíssimos êxodos"...
Ao lado destas formas diretas de produzir efeitos de intensidade e imensidade, Euclides pratica certo modo de aliar o adjetivo ao substantivo, no intuito de acrescer o último, que acaba roçando pelo pleonasmo. Exemplo disso são grupos nominais como "fatalidade inexorável", "sóis ardentes", "remoinhos turbilhonantes", "desertos recrestados", "fortes aguaceiros , aguaceiro torrencial", "cintilações ofuscantes", "estrelas fulgurantes", "estio ardente", "apoteose triunfal"; e este caso raro de diminutivo tautológico: "pequenos arbúsculos"...
O objeto da descrição ganha uma dureza, uma inflexibilidade tal que a sua relação com qualquer objeto há de ser, forçosamente, a de oposição. Agigantando-se, cada ser se põe, em face do outro, como um antagonista. Nesse universo exacerbam-se os seres e as relações entre os seres.
O uso da antítese que um leitor perspicaz, Augusto Meyer, viu como o traço mais saliente do estilo euclidiano, virá a entender-se melhor se posto em função da natureza mesma da hipérbole. Porque o contraste, quando imediato, é também um modo de realçar a expressão de cada um dos objetos aproximados.
Em uma proposição do tipo "Os vales secos fazem-se rios", a secura torna-se mais sensível quando oposta e unida à fluidez das águas, e vice-versa. Os contrários, colados, avivam-se: "Da extrema aridez à exuberância extrema", "os vales nimiamente férteis e os estepes mais áridos", "barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes"; "...aqueles núcleos obscuros, alguns mais vastos que a Terra, negrejando dentro da cercadura fulgurante das fáculas"; "crescem a um tempo as máximas e as mínimas, até que no fastígio das secas transcorram as horas num intermitir inaturável de dias queimosos e noites enregeladas"; "insola-se e congela-se em 24 horas".
Passando do discurso sobre a natureza ao retrato dos homens, mantém-se o processo do acirramento antinômico:
"... o chefe do povo, o astuto João Abade, abrange no olhar dominador a turba genuflexa"; "o velho Macambira, pouco afeiçoado à luta, de coração mole", segundo o dizer expressivo dos matutos, mas espírito infernal no gizar tocaias incríveis..."; "vaqueiros rudes e fortes, trocando, como heróis decaídos, a bela armadura de couro pelo uniforme reles de brim americano"; "madonas emparceiradas a fúrias; belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico"; "Batistas truculentos, capazes de carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosários...
Essa retórica não é neutra. Ela visa, pelo uso da hipérbole, a transmitir uma impressão de grandeza, até mesmo de terribilidade que suscitaria o trato do solo e do clima; e força, pelo uso da antítese, o sentimento de que as forças naturais e morais assim desencadeadas coexistem em um desequilíbrio prestes a derivar para a catástrofe. A rigor, a linguagem descritiva e narrativa de Os Sertões move-se no universo semântico do inelutável.
Não convém esquecer a gênese da obra: ela é o desenvolvimento de uma série de reportagens feitas junto ao sítio do massacre. O seu vetor narrativo é a destruição de uma comunidade. Assim, tanto a ordenação dos sucessos (dispositio) quanto o tratamento verbal (elocutio) se subordinam à percepção de uma realidade já vista e já sentida e qualificada como trágica.
Tratando-se sempre de uma obra de fundo histórico, a margem de liberdade estilística se faz maior no momento da elocução (no caso, pelo uso intensivo de certas figuras) do que na montagem do relato; esta depende, em larga medida, da série cronológica. Assim é, especialmente se vemos do alto o esquema da campanha, isto é, se atentamos apenas para as suas fases maiores, as quatro expedições narradas em ordem sucessiva. Euclides procurou ser fiel às marchas e contramarchas da luta (Parte III) e à doutrina rígida dos encadeamentos de causa e efeito que norteava a sua percepção da História. Mas, em virtude dessa mesma fidelidade a um pensar os dados históricos como elos necessários de uma cadeia temporal, acabou identificando evento e fatalidade. A sucessão das contingências é absorvida por um sistema fechado de escrita, que é o espaço literário próprio para a representação do trágico. O trágico, nascido à sombra de uma ideologia determinista, apossa-se da ordem narrativa e dá-lhe um sentido de inexorabilidade.
Na representação dos quadros coletivos ou das ações individuais atua sempre uma vinculação estreita. Quais os antecedentes remotos da luta? Tropelias dos jagunços no interior baiano. Qual a causa dessas tropelias? A ociosidade, a disponibilidade do sertanejo naquelas paragens. E qual o motivo dessa condição? A decadência dos garimpos que outrora atraiam boa parte da população masculina. Não há elo falho. Passando às causas próximas da luta, quais seriam? "Determinou-a incidente desvalioso": a falta de cumprimento, por parte das autoridades de Juazeiro, do contrato feito com o Conselheiro; este pagara adiantado uma sortida de madeiras, mas não a recebera na data aprazada. Mas, por que essa conduta fraudulenta? Um vexame sofrido pelo juiz da cidade quando esta fora invadida por gente de Canudos. E qual a razão dessas investidas? O descompasso entre uma sociedade arcaica e as instituições "civilizadas" da República. O porquê desse desnível já fora, por sua vez, devidamente indicado na segunda parte, O Homem. Também ai, nenhum missing link.
O enlaçamento dos fatos é uma reiterada aplicação da lei da causalidade. As idas e vindas da tática militar, que constituem o miolo da terceira parte, ilustram, no dia-a-dia da campanha, o mesmo sólido travejamento. O espaço do embate é causa do seu modo de ser: o cipoal da caatinga faz da guerra uma guerrilha e do jagunço um adversário solerte e invisível. As tropas federais, por sua vez, guiadas por militares que subestimavam o homem do sertão, deveriam fatalmente sofrer revés sobre revés. Mas, como é de lei, o mais forte aniquilará o mais fraco, e a cidadela será destruída.
Do traçado mecânico dos fatos, da adesão filosófica ao determinismo, parece que não poderia surgir outra voz que não a do consenso impassível ou, quando muito, resignado. Mas o discurso trágico não se esgota na enunciação do "é assim mesmo ; recortando a vítima que o excesso de violência fez culposa e o mesmo excesso esmagou, o trageda se debruça piedoso sobre a fragilidade da carne punida e lamenta como pode o rigor do destino. Na tragédia há tempo de pecar, tempo de punir e tempo de chorar. Abraçando a imanência da lei, ela dá acesso à transcendência de uma reflexão sofrida em torno do mal. E o inelutável do fato e da regra vai cedendo o duro cerne às inflexões de um pensamento propriamente humano. A linguagem da denúncia e do protesto que remata a narração de uma Canudos derruída e aviltada cumpre uma função de apelo, em que pode aparecer um "nós" empenhado no que diz, e na qual já não reina sem contraste a impessoalidade do discurso factual:
"Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.
Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem...
Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos?...
E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho, que se entregara, confiante - e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa História?
Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5200, cuidadosamente contadas."
A LEITURA DE "Os SERTÕES", HOJE
Pode-se ler a obra principal de Euclides aproximando-a da prosa do seu tempo: naturalista no espírito, acadêmica no estilo. A mediação ideológica integra Os Sertões na cultura que presidiu ao estabelecimento da Primeira República. Quanto à mediação literária, trata-se de um legítimo coetâneo de Afonso Arinos, Coelho Neto, Rui Barbosa e Olavo Bilac, autores cujo nacionalismo e eventual sertanismo se resolviam perfeitamente em uma dicção purista levada ao extremo do arcaismo e do preciosismo.
A primeira conclusão que se tiraria desses vínculos é que Os Sertões são obra irremediavelmente datada. Conclusão perigosa como todas as meias verdades. Euclides não se teria tornado um dos nomes centrais da cultura brasileira pelo determinismo estreito das idéias nem pelo rebuscado da linguagem: ele nos afeta apesar desses caracteres postos em crise pela ciência e pelo gosto do século XX. A leitura moderna d'Os Sertões deve apanhar os seus estratos superiores e mais resistentes: a inegável potência da representação, o cuidado de ler atrás do fato o seu contexto, a capacidade de desentranhar da História os momentos em conflito e, como se viu linhas atrás, a possibilidade de superar fáceis esquemas ideológicos em busca de uma objetividade mais alta, realizada na denúncia de um equívoco que, consumado, se fez crime.
A condição sertaneja ganhou, a partir de Euclides, uma consistência nova em nossas letras: o estatuto da contradição. Hoje podemos dialetizar o que no livro está dito em forma de opostos inconciliáveis:
litoral/sertão, branco/mestiço e, no interior da vida sertaneja, coragem/timidez, violência/apatia, orgulho/obediência, rebelião/superstição. Hoje, depois de tantos bons estudos sobre messianismo, sabemos interpretar o fenômeno não mais em termos de psiquiatria coletiva, mas articulando com todas as forças de resistência de que se vale a cultura popular em momentos de crise e de opressão. É necessário reconhecer, porém, que o recorte daqueles contrastes e o relevo dado ao profetismo jagunço foram obra apaixonada de Euclides, e que estavam n’Os Sertões sessenta anos antes de terem virado tema de teses universitárias.
Propor o estudo d'Os Sertões aos estudantes de hoje não é tarefa muito fácil; e menos rendoso ainda se tornará o projeto do educador se ele insistir em apontar ao jovem somente aqueles traços da obra pelos quais ela não vai além de documento do seu tempo: a linguagem rebarbativa, o ângulo faccioso da visão. Se, ao contrário, forem escolhidas para leitura e análise as páginas de vigorosa mimese da Natureza e da História; e se acentuarem os momentos de tensão ética que não faltam ao longo do livro, então ficará plenamente iluminada a sua classicidade profunda, e a reedição de Os Sertões assumirá o significado que os organizadores se propuseram dar-lhe ao prepará-la para o 70º aniversário do seu aparecimento.
NOTAS
(1) V. as páginas equilibradas que Olympio de Souza Andrade dedicou à questão, em História e Interpretação de "Os sertões"', 2.ª ed., S. Paulo, Edart, pp. 236-245.
(2) O uso da palavra 'raça' aplicada ao homem só se generalizou no século XIX; até o século XVIII, segundo as pesquisas de Leo Sptizer, o termo só era corrente na acepção de "espécie animal" (Em Critica stilistica e semantica historica, Bar1. Laterza, 1966. pp. 230-241).
(3) São todas frases categóricas que os maiores antropólogos do século XX iriam desmentir. Um Boas, um Frobemus, um Malinowski, um Lévi-Strauss reduziram-nas ao que são: pseudociência, preconceitos gerados numa fase de expansão do colonialismo europeu; mas preconceitos que dariam os mais sinistros resultados durante o regime nazista, que explorou politicamente a noção antiquada e falsa de "raça pura". No Brasil, aqueles modos de ver foram partilhados ingenuamente por mais de um estudioso sério: Nina Rodrigues, por exemplo, mestre de estudos afro-brasileiros, e que influiu no pensamento de Euclides. Mas, graças à inteligência de mestres como Roquete Pinto, Artur Ramos, Gilberto Freyre, Roger Bastide e Florestan Fernandes, também entre nós se estabeleceu um critério sócio-cultural para entender os fatos da mestiçagem, relegando-se as teorias racistas a merecido limbo.
BIBLIOGRAFIA BASICA
Dispõem-se os livros na ordem cronológica da sua publicação.
1. ARARIPE JR. - "Dois grandes estilos". Prefácio da 2ª edição de Contrastes e Confrontos de Euclides da Cunha. Porto, Lello, 1907.
2. FRANCISCO VENANCIO FILHO - Euclides da Cunha. Rio, Academia Brasileira de Letras, 1931.
3. VICENTE LICÍNIO CARDOSO - À Margem da História do Brasil. 2ª ed., S. Paulo, Cia. Editora Nacional, 1938.
4. GILBERTO FREYRE - Perfil de Euclides e Outros Perfis. Rio, José Olympio, 1944.
5. SILVIO RABELO - Euclides da Cunha. Rio, Casa do Estudante do Brasil, 1947.
6. FRANKLIN DE OLIVEIRA - A Fantasia Exata. Rio, Zahar, 1959.
7. CRUZ COSTA - Panorama da História da Filosofia no Brasil. 5. Paulo, Cultrix, 1960.
8. OLYMPIO DE SOUZA ANDRADE - História e Interpretação de "Os Sertões". 5. Paulo, Edart, 1960.
9. MODESTO DE ABREU - Estilo e Personalidade de Euclides da Cunha. Rio, Civilização Brasileira, 1963.
10. NELSON WERNECK SODRÉ. "Introdução" a Os Sertões. Editora Universidade de Brasília, 1963.
11. CLÓVIS MOURA — Introdução ao Pensamento de Euclides da Cunha. Rio, Civilização Brasileira, 1964.
12. OLYMPIO DE SOUZA ANDRADE - Euclides da Cunha. Antologia. S. Paulo, Melhoramentos, 1966.
13. EUCLIDES DA CUNHA, Obra Completa, edição Aguilar sob a dir. de Afrânio Coutinho, 2 vols., Rio, 1966.
14. DANTE MOREIRA LEITE - O Caráter Nacional Brasileiro, 2.' ed., S. Paulo, Pioneira, 1969.
EUCLIDES DA CUNHA: A HISTÓRIA COMO TRAGÉDIA

ROBERTO VENTURA
Publicado em 1902, Os sertões é uma obra híbrida que transita entre a literatura, a história e a ciência, ao unir a perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, à construção literária, marcada pelo fatalismo trágico e por uma visão romântica da natureza. Euclides da Cunha recorreu a formas de ficção, como a tragédia e a epopéia, para estilizar a guerra de Canudos e inserir os fatos em um enredo capaz de ultrapassar a sua significação particular.
Cobriu o conflito, de agosto a outubro de 1897, como correspondente de O Estado de S. Paulo, acompanhando a quarta e última expedição, formada por oito mil soldados. A epopéia gloriosa da República brasileira, pela qual combatera na juventude, adquiriu caráter de tragédia na violenta intervenção militar que testemunhou no sertão da Bahia.
Relatou, em sua última reportagem, o sangrento combate de 1o de outubro: “Felizes os que não presenciaram nunca um cenário igual...”. As pilhas de cadáveres e o monte de feridos que gemiam amontoados no chão lhe lembraram o vale do Inferno, que o poeta Dante Alighieri (1265-1321) percorreu n’A Divina Comédia. Tal visão demoníaca deixou profundas marcas no ex-militante republicano: “acreditei haver deixado muitas idéias, perdidas, naquela sanga maldita, compartindo o mesmo destino dos que agonizavam manchados de poeira e sangue...”
A guerra se tornou uma experiência-limite, que o colocou em contato com a morte vã e inglória e com a crueldade covarde e abjeta. O mal absoluto, que Euclides encarou no vale da morte em Canudos, foi também exposto pelo escritor polonês Joseph Conrad, ao enfocar a colonização predatória do Congo belga em O coração das trevas (1902), ou pelo italiano Primo Levi, em Se isso é um homem (1947), com seu relato do horror inominável dos campos de concentração alemães.
Euclides elaborou, no livro de 1902, seu remorso e perplexidade com o desfecho brutal da campanha, para o qual contribuiu, ainda que de modo involuntário, com artigos exaltados em O Estado de S. Paulo, que se encerravam com os brados patrióticos de “viva a República” ou “a República é imortal”. Fizera coro, como quase toda a imprensa, àqueles que viam na rebelião um grave perigo para o novo regime.
Passou quatro anos após o término da guerra, preenchendo centenas de folhas de papel, para ordenar o caos e superar o vazio trazidos sob o impacto daquela “região assustadora”, de onde voltou deprimido e doente. Seguia revendo na mente as “Muitas cenas do drama comovente/ De guerra despiedada e aterradora”, conforme escreveu no poema “Página vazia”.
Traçou, em Os sertões, um retrato de Antônio Conselheiro, o líder da comunidade, como personagem trágico, guiado por forças obscuras e ancestrais e por maldições hereditárias, que o levaram à insanidade e ao conflito com a ordem. Viu Canudos como desvio histórico capaz de ameaçar a “linha reta”, que seguia desde a juventude, entendida como a fidelidade aos princípios éticos aprendidos com o pai, amparados na crença no progresso e na República.
Filho de um comerciante de Quixeramobim, no interior do Ceará, Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, iniciou sua peregrinação mística na década de 1870, depois de ter sido abandonado pela mulher, que fugira com um policial. Seus familiares participavam, desde a década de 1830, de um sangrento combate contra um clã inimigo. Para Euclides, tal luta entre famílias teria criado uma “predisposição fisiológica” nos seus descendentes, que tornou hereditários os rancores e as vinganças, de modo semelhante aos personagens trágicos dos mitos gregos.
A história como ficção
O historiador norte-americano Hayden White já havia observado, em ensaio de 1987, que a diferença entre história e ficção reside mais no conteúdo do que propriamente na forma. A história trata de acontecimentos reais, passíveis de comprovação, enquanto a ficção apresenta fatos imaginários ou inventados. Ambas são porém construções verbais, que ordenam e codificam os fatos de acordo com as formas de ficção adotadas.
O crítico canadense Northrop Frye enfocou, em Anatomia da crítica (1957), o personagem trágico como um líder, situado entre o divino e humano, que se move do heróico ao irônico, por ser muito grande se comparado ao homem comum, mas que se mostra falho frente aos deuses ou ao destino: “O herói trágico situa-se tipicamente no topo da roda da fortuna, a meio caminho entre a sociedade humana, no solo, e algo maior, no céu.” Limitado por uma ordem natural ou divina, o protagonista da tragédia é humilhado e acaba por entrar em agonia, muito distante da postura heróica inicial.
Frye define a atitude irônica a partir do eíron, o homem que se deprecia. A ironia gera um arranjo de palavras que se afasta da afirmação direta ou óbvia em favor dos sentidos velados mas sugeridos: “O termo ironia indica uma técnica, de alguém parecer que é menos do que é, a qual, em literatura, se torna muito comumente uma técnica de dizer o mínimo e de significar o máximo possível.” E conclui: “O escritor de ficção irônica, portanto, censura-se”.
Ao contrário da tragédia, em que a catástrofe do herói se relaciona de forma plausível com seu caráter e ações, a ironia torna arbitrária a situação trágica, ao mostrar que a vítima é um bode expiatório, escolhido por acaso e que não merece o que lhe acontece. Surgindo da comédia e da ficção realista, a ironia se move em direção ao mito, fazendo surgir os contornos obscuros das cerimônias de sacrifício.
Sob o signo da ironia
Euclides recorreu à ironia, para mostrar como a guerra de Canudos negou ou inverteu o mito glorioso da Revolução Francesa. Conhecera tal mito pelos relatos românticos de Victor Hugo, com o romance Noventa e três (1874), sobre a guerra dos camponeses católicos da região da Vendéia, e de Jules Michelet, com a História da Revolução Francesa (1874-53), que transformaram o povo em herói coletivo.
Fez, em Os sertões, a autocrítica do patriotismo exaltado de suas reportagens e se afastou da comparação entre a história brasileira e a Revolução Francesa. Em seus artigos iniciais sobre a guerra, como “A nossa Vendéia”, aproximara o conflito no sertão baiano da rebelião em 1793 dos camponeses monarquistas e católicos contra a França revolucionária. Reconhecia a omissão de sua cobertura jornalística, ao relatar no livro, ainda que de forma velada, o massacre dos prisioneiros, sobre o qual antes se calara.
Euclides viu o sertão como o reflexo do litoral, ambos dominados pela mesma barbárie. Tal nota pessimista encontrou expressão nas inúmeras antíteses, que indicam suas próprias hesitações no julgamento da guerra. Canudos é a “Tróia de taipa dos jagunços”, misto de cidadela inexpugnável e de labirinto de casebres de barro, cuja luta evocaria os feitos épicos cantados por Homero. O sertanejo é um herói monstruoso, “Hércules-Quasímodo”, tão forte quanto desgracioso. Conselheiro um “pequeno grande homem”, que entrou para a história, como poderia ter ido para o hospício...
A história como tragédia
Euclides concebeu a história como drama trágico, ao escrever sobre os conflitos armados dos primeiros anos da República, como a Revolta da Armada (1893-4) e a guerra de Canudos (1896-7), dos quais foi testemunha ou participante. Empregou imagens ligadas às artes plásticas e cênicas, para apresentar a história como se fosse uma peça de teatro ou os quadros de uma exposição.
Leu, ao longo da vida, os trágicos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, além dos dramas de Shakespeare. Redigiu grande parte de Os sertões em São José do Rio Pardo, de 1898 a 1901, enquanto dirigia a reconstrução de uma ponte metálica sobre o rio. À frente do barracão, de onde fiscalizava as obras, escreveu a indagação cruel e irônica do Hamlet de Shakespeare, surpreso com a alegria de sua mãe, a rainha Gertrude, após a misteriosa morte do marido: “What should a man do but be merry?” (“O que pode um homem fazer senão alegrar-se?”)
Berthold Zilly, tradutor alemão da obra, observou que o engenheiro-escritor recria a guerra como tragédia, em que o não-herói, o sertanejo, se revela como o único herói numa transfiguração quase milagrosa de apoteose: “A História é apresentada como trágica, repleta de infelicidades, infâmias e catástrofes, um imbricamento de progressos e retrocessos marcados por hecatombes.”
O espaço geográfico se transforma, nas palavras de Euclides, em palco de um “emocionante drama” histórico. O sertão de Canudos é um “monstruoso anfiteatro”, cujo isolamento se reforça pelo majestoso círculo de montanhas, que evoca os teatros ao ar livre da antigüidade. A matança dos prisioneiros é tomada como “um drama sanguinolento da Idade das cavernas”, ou uma “inversão de papéis”, em que os soldados e oficiais, supostos representantes da civilização, agiam de forma bárbara.
A natureza é vista, em “A terra”, primeira parte de Os sertões, como cenário trágico, que antecipa, de modo simbólico, a chacina dos prisioneiros. A vegetação da caatinga permitiria antever o sacrifício dos sertanejos degolados pelos soldados. As flores rubras das cabeças-de-frade lembravam “cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica”.
Euclides apresentou as batalhas, a que assistiu como repórter, como quadros e cenas vistos de tribunas elevadas ou de camarotes, formados pelos morros ao redor de Canudos, onde se instalaram as tropas com os canhões que bombardeavam a cidade. As metáforas teatrais transformam os combates em espetáculo, em que o narrador retoma o papel do coro da tragédia, comentando os acontecimentos, lamentando as vítimas e acusando os vencedores.
A violenta batalha de 24 de setembro de 1897, que resultou no cerco de Canudos, é narrada de um modo épico, plástico e ilustrativo, com longas descrições de quadros, e depois como um ato de tragédia, em que as imagens se tornam teatrais e dinâmicas. Contado com intensa dramaticidade, o combate é central no desenrolar da guerra. Observa Euclides: “traçara-se a curva fechada do assédio real, efetivo. A insurreição estava morta.”
Munido de binóculos, o narrador contempla o espetáculo do alto do morro, junto com os oficiais, que formavam uma “platéia enorme”, entusiasmada com os avanços das tropas: “Aplaudia-se. Pateava-se. Estrugiam bravos.” Os incêndios no casario lembravam os refletores de um palco e a fumaça escondia por vezes o quadro, “como o telão descido sobre um ato de tragédia”. Refere-se à cortina, empregada nas tragédias gregas para impedir a visão das cenas violentas ou patéticas, que eram representadas por trás do pano, enquanto os espectadores ouviam os gritos da vítima.
A degola dos prisioneiros é mencionada, de forma velada, no final de Os sertões. Tal elipse, em que a matança se torna implícita, tem função semelhante à do telão no teatro: o narrador adota o decoro trágico e evita a representação de fatos cruentos, já que não haveria linguagem capaz de exprimir tal horror: “E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera?”
Euclides retomou tal visão teatral e irônica da história no breve relato “A esfinge”, de Contrastes e confrontos (1907). Contou a visita noturna do marechal Floriano Peixoto às obras da fortificação que, como engenheiro militar, erguia no cais do porto, para abrigar o canhão que iria bombardear os navios rebelados. O marechal de ferro, que ocupava a Presidência, surgia, aos seus olhos, como a “esfinge”, em cuja face enigmática via inscritos os destinos do país.
O sogro de Euclides, o general Sólon Ribeiro, um dos líderes da proclamação da República, se encontrava preso sob a acusação de envolvimento com os revoltosos da Marinha. Euclides lia, em meio a tantos conflitos, o romance de cavalaria, Ivanhoé (1820), do escocês Walter Scott, e a obra histórica do inglês Thomas Carlyle, A Revolução Francesa (1837), em que são criticados os abusos do poder revolucionário. Procurava, nas páginas de Scott ou Carlyle, encontrar consolo para os descaminhos do novo regime, manchado por guerras civis.
Mirando, durante a Revolta da Armada, os navios de guerra imersos na escuridão da baía de Guanabara, o escritor se sentia como o figurante de um drama trágico: “Imaginei-me, então, obscuríssimo comparsa numa dessas tragédias da antigüidade clássica, de um realismo estupendo, com os seus palcos desmedidos, sem telão e sem coberturas, com os seus bastidores de verdadeiras montanhas em que se despenhavam os heróis de Ésquilo”.
Os papéis desse drama histórico, repleto de ironia e comicidade, se confundiam “num jogar de antíteses infelizes”, em que a legalidade -- o governo – esmagava a revolta pela suspensão das leis: “Os heróis desmandam-se em bufonerias trágicas. Morrem, alguns, com um cômico terrível nesta epopéia pelo avesso”. A história se encenava como comédia trágica ou era narrada enquanto epopéia sem heróis, em que o estilo elevado era rebaixado pela perspectiva irônica.
Euclides teve, como o Conselheiro, um fim trágico. Ambos foram construtores itinerantes, um de igrejas e cemitérios, o outro de pontes e estradas. Os dois tiveram o destino marcado pelo adultério das esposas, pela luta sangrenta de suas famílias contra seus inimigos e pelas posições que assumiram frente à República. Ambos tiveram fé, o líder religioso na força redentora da devoção e do ascetismo, o escritor no poder transformador da ciência e da filosofia.
Euclides morreu, em 15 de agosto de 1909, no bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, ao tentar matar, a tiros, o cadete Dilermando de Assis, amante de sua mulher. Sete anos depois, Dilermando fuzilou Euclides da Cunha Filho, que tentara vingar o pai. A imprensa noticiou a morte do autor de Os sertões como a “tragédia da Piedade”, usando as mesmas imagens teatrais presentes em sua obra, e comparou o fim de seu filho ao drama do Hamlet de Shakespeare, obcecado em desforrar o pai assassinado. Ao agir como os heróis antigos ou como os valentões sertanejos, a vida de Euclides se tornou uma ficção trágica.
Obras consultadas
Andrade, Olímpio de Souza. História e interpretação de Os sertões. São Paulo, Edart, 1966.
Cunha, Euclides da. Diário de uma expedição (1897). São Paulo, Companhia das Letras, 2000. Org. de W. N. Galvão.
_____. Os sertões: Campanha de Canudos (1902). São Paulo, Ática, 1998.
_____. Contrastes e confrontos (1907). Em: Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, v. 1.
_____. Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo, Edusp, 1997. Org. por W. N. Galvão e O. Galotti.
Frye, Northrop. Anatomy of criticism: Four essays (1957). Princeton, Princeton Univ. Press, 1973. Trad. Anatomia da crítica: Quatro ensaios. São Paulo, Cultrix, s.d.
Kitto, H. D. F. Greek tragedy: A literary study (1939). London, Routledge, 1990.
White, Hayden. “The question of narrative in contemporary historical theory”. In: The content of the form: Narrative discourse and historical representation. Baltimore, London, The Johns Hopkins Univ. Press, 1987.
Zilly, Berthold. “Um depoimento brasileiro para a História Universal: traduzibilidade e atualidade de Euclides da Cunha”. In: Humboldt (Bonn), 72: 8-12, 1996.
_____. “A guerra como painel e espetáculo. A história encenada em Os sertões”. In: História, Ciências, Saúde: Manguinhos (Rio de Janeiro), v. 1, 1: 13-37, 1997.
DO MAR SE FEZ O SERTÃO: EUCLIDES DA CUNHA E CANUDOS
ROBERTO VENTURA
Os sertões, de Euclides da Cunha, se insere em um gênero de grande presença na cultura brasileira dos últimos cem anos: o ensaio de interpretação do Brasil. O ensaio se tornou uma forma privilegiada pelos escritores brasileiros, por permitir a combinação de conhecimentos ecléticos e de experiências múltiplas a partir de um estilo literário, com traços poéticos ou memorialísticos. O ensaio é, para Antonio Candido, uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do país, da qual fazem parte autores como Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Manoel Bomfim, Oliveira Viana, José de Alcântara Machado, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro. Todos traçaram amplos panoramas da sociedade e da cultura brasileiras com base em modelos vindos da antropologia, da história, da geografia e da sociologia.
Luta no sertão
Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, começou a pregar por volta de 1870 pelo Nordeste e a organizar mutirões para a construção de igrejas e cemitérios. Seus familiares participavam, desde a década de 1830, de um sangrento combate contra um clã inimigo no sertão do Ceará. Para Euclides, essa luta entre as famílias teria criado uma "predisposição fisiológica" entre os seus descendentes, que tornou hereditários os rancores e as vinganças, de modo semelhante aos personagens trágicos dos mitos gregos.
Filho de um comerciante de Quixeramobim, no interior do Ceará, Antônio Maciel trabalhou na loja do pai, que dirigiu com a morte deste. Com a liqüidação do negócio, foi professor, caixeiro, escrivão e solicitador em várias cidades do estado. Iniciou sua peregrinação mística depois de ter sido abandonado pela mulher, que fugira com um policial. Passou a ser chamado de Conselheiro, título atribuído àqueles que guiavam o povo em orações e davam instruções religiosas.
Foi proibido em 1882 de pronunciar sermões pelo arcebispo da Bahia, que temia sua crescente influência. Seus conflitos com a ordem estabelecida se agravaram com a proclamação da República. Conselheiro se opunha ao novo regime, que fizera a separação entre Estado e Igreja e introduzira o casamento civil. Acreditava no retorno da Monarquia, forma política tida como eterna.
Após liderar rebelião contra a cobrança de impostos em Bom Conselho, na Bahia, fixou-se em 1893 com seus seguidores em Canudos, lugarejo com uma igreja, próximo a uma fazenda abandonada, às margens do rio Vaza-Barris, no nordeste do estado. O nome da localidade vinha da existência de plantas, chamadas de canudos-de-pito, que forneciam tubos para cachimbos de barro. Conselheiro criou Belo Monte como refúgio sagrado contra as secas da região e as leis seculares da República.
O atraso na entrega de madeira, comprada em Juazeiro para a construção de uma nova igreja, foi o estopim de um conflito armado, que se estendeu por quase um ano, de novembro de 1896 a outubro do ano seguinte. Quatro expedições militares foram enviadas contra Canudos. A guerra terminou com a morte de 5 mil soldados e o massacre de uma cidade, cuja população foi estimada entre 10 mil e 25 mil habitantes.
Foi uma guerra de extermínio, que Euclides da Cunha denunciou em Os Sertões, publicado cinco anos após a destruição da comunidade. Mais de doze jornais enviaram repórteres e fotógrafos na primeira cobertura ao vivo de uma guerra no Brasil, que a instalação de linhas telegráficas tornara possível. A campanha foi fotografada por Flávio de Barros e pelo espanhol Juan Gutierrez, morto em ação.
A destruição de Canudos se deveu menos ao anti-republicanismo do Conselheiro do que a fatores políticos, como os conflitos entre facções partidárias na Bahia, a atuação da Igreja contra a atuação pouco ortodoxa dos beatos e pregadores e as pressões dos proprietários de terras contra a comunidade, cuja expansão trazia escassez de mão-de-obra e rompia o equilíbrio político da região.
Outros conflitos em nível nacional transformaram a comunidade em alvo de grupos e facções, como os embates entre civilistas e militaristas, ligados à sucessão do presidente Prudente de Morais (1894-8). A guerra serviu de pretexto à repressão aos grupos monarquistas e aos setores jacobinos, tendo contribuído para a implantação da política dos governadores, criada pelo presidente Campos Sales (1898-1902), em que as lideranças civis de Minas Gerais e de São Paulo passaram a se alternar no poder.
A nossa Vendéia
A guerra de Canudos preencheu o vazio político e existencial em que Euclides se encontrava desde que se desiludira com a carreira militar e com os rumos da República. Pedira licença do Exército em 1895 e reforma no ano seguinte no posto de tenente, com direito à terça parte do soldo. Trabalhava em São Paulo como engenheiro na Superintendência de Obras Públicas, enquanto sonhava em se tornar professor da Escola Politécnica, aspiração que não pôde realizar.
Duas forças militares enviadas a Canudos já haviam fracassado, quando o coronel Moreira César foi nomeado comandante da terceira expedição. Herói da repressão à Revolução Federalista no sul do país, Moreira César morreu na madrugada de 4 de março de 1897, após o primeiro ataque à cidade. Foi uma derrota humilhante, em que 1.300 soldados abandonaram todo o armamento, e até o corpo do coronel, na fuga desordenada.
Euclides viu a derrota da expedição Moreira César como a chance de regenerar a República, que se afastara de seus ideais. Era o estopim que permitiria reacender a chama revolucionária, conforme escreveu, em março de 1897, ao seu amigo de Campanha, o político mineiro João Luís Alves: "vejo nesta situação dolorosa um meio eficaz para ser provada a fé republicana".
Comentou a espantosa derrota da terceira expedição em "A nossa Vendéia", título dos dois artigos que publicou em O Estado de S. Paulo em 14 de março e 17 de julho de 1897. Aproximava o conflito na Bahia da rebelião dos camponeses monarquistas e católicos da região da Vendéia, ocorrida na França de 1793 a 1795. Assim como a Revolução Francesa havia sido ameaçada pela Vendéia, a recém-proclamada República brasileira estaria em perigo pela atuação dos seguidores do Conselheiro. Mas mostrava sua certeza inabalável da vitória do governo: "Este paralelo será, porém, levado às últimas conseqüências. A República sairá triunfante desta última prova."
Escritos em São Paulo, antes de qualquer contato com o sertão baiano, os artigos já prefiguravam o livro de 1902. Traziam um amplo estudo geográfico e climático da região, além da análise dos aspectos étnicos e culturais do homem sertanejo, com base, em grande parte, nas informações fornecidas pelo engenheiro baiano Teodoro Sampaio, seu colega na Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, que explorara a área. Citava viajantes e naturalistas, como Martius, Saint-Hilaire, Humboldt e Caminhoá, e antecipava algumas das teses de Os sertões sobre a simbiose entre a terra e o homem.
Graças aos artigos, foi convidado por Júlio de Mesquita para cobrir a quarta expedição como correspondente de O Estado de S. Paulo. Tinha a missão, segundo o jornal, de enviar correspondências do teatro das operações, além de tomar notas e fazer estudos para escrever um trabalho de fôlego sobre Canudos e o Conselheiro, que o Estado iria publicar em volume. Pretendia dar ao livro o mesmo título dos artigos, A nossa Vendéia, reforçando o paralelo entre a história francesa e a brasileira.
Em Canudos
Euclides participou, como repórter, de agosto a outubro de 1897, da quarta e última expedição, formada por 8 mil soldados, sob o comando do general Artur Oscar de Andrade Guimarães. Desembarcou em Salvador no dia 3 de agosto, acompanhando a comitiva do ministro da Guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt, que seguia para Monte Santo, de modo a organizar a base de operações e garantir o abastecimento das tropas.
Permaneceu em Salvador até 30 de agosto, quando partiu para Monte Santo, acompanhando o ministro. Ficou na cidade até 13 de setembro, quando finalmente obteve autorização para ir a Canudos. Temia, conforme escreveu ao advogado paulista Reinaldo Porchat, não chegar "a tempo de assistir à queda do arraial maldito".
Chegou a Canudos em 16 de setembro e tomou contato com uma cidade semidestruída pelos constantes bombardeios, com seus habitantes privados de água e comida. Presenciou pouco menos de três semanas de luta, até 3 de outubro, quando se retirou doente, dois dias antes do fim da guerra, com acessos de febre. Não assistiu ao massacre dos prisioneiros, à queda da cidade, ou à descoberta do cadáver do Conselheiro e de seus manuscritos. Tais cenas, ausentes de suas reportagens, foram relatadas de forma sucinta em Os sertões.
Passeou, dentro da cidade, em 29 de setembro, como contou no penúltimo artigo enviado de Canudos: "passeio perigosamente atraente, com os jagunços a dois passos apenas, nas casas contíguas". Anotou, no mesmo dia, na caderneta de bolso que trazia consigo: "Não posso definir a comoção ao entrar no arraial." Decepcionou-se com o aspecto daquela povoação estranha, cujas ruas eram substituídas por um labirinto de becos, com casas que se acumulavam em absoluta desordem, como se tudo aquilo tivesse sido construído "febrilmente -- numa noite -- por uma multidão de loucos!" Assustou-se ainda com o interior dos casebres: escuros, sem ar e com pouca mobília.
Euclides silenciou sobre as atrocidades da guerra, no que foi acompanhado por quase toda a imprensa. Sentiu-se tolhido para atacar o Exército e se deixou cegar pela máquina de propaganda da imprensa e do governo, para a qual contribuiu com artigos exaltados, que se encerravam com os brados patrióticos de "viva a República" ou "a República é imortal". Era desde 1896 tenente reformado e fora nomeado, para a cobertura da guerra, adido ao estado-maior do ministro da Guerra, com direito a ordenança. Acompanhou grande parte dos combates junto aos oficiais da comissão de engenharia e do quartel-general.
Os materiais enviados pelos correspondentes, sobretudo pelo telégrafo, eram submetidos à censura militar. Mas jornalistas, como Favila Nunes, da Gazeta de Notícias, do Rio, e Lelis Piedade, do Jornal de Notícias, da Bahia, chegaram a mencionar atos de violência das tropas. Outro repórter, Manoel Benício, do Jornal do Comércio, do Rio, foi tão incisivo em suas críticas à imperícia do general Artur Oscar que acabou sendo expulso de Canudos. A crueldade da campanha só foi revelada porém, de forma veemente, pelo monarquista Afonso Arinos, no Comércio de São Paulo, que denunciou a degola dos prisioneiros e os abusos cometidos contra mulheres e crianças.
As reportagens de Euclides se interromperam de forma súbita em 1o de outubro. Escreveu sobre as manhãs admiráveis em Canudos, com os raios de sol que iluminavam o círculo de montanhas, e relatou o violento ataque à cidade, que assistiu da sede da comissão de engenharia. Sentiu-se profundamente desapontado ao contemplar, após os combates, os feridos que gemiam amontoados no chão, numa cena lhe pareceu mais lúgubre do que o vale do inferno de Dante: "acreditei haver deixado muitas idéias, perdidas, naquela sanga maldita, compartindo o mesmo destino dos que agonizavam manchados de poeira e sangue..."
Os sertões revisitados
Passou quatro anos após o término da guerra, preenchendo centenas de folhas de papel, para ordenar o caos e superar o vazio trazidos sob o impacto daquela região assustadora, de onde voltou deprimido e doente. Seguia revendo, na mente, as imagens comoventes do conflito, como escreveu, em Salvador, no poema "Página vazia".
Grande parte do livro foi redigido em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo. Morou na cidade por três anos, de 1898 a 1901, para reconstruir a ponte metálica sobre o rio, que caíra devido a uma enchente. Das páginas escritas em um pequeno barracão no canteiro de obras, ou em sua casa à noite, surgia uma nação em ruínas que devorava os seus próprios filhos.
Enquanto lançava novas bases para a ponte sobre o rio Pardo, escrevia sobre a necessidade de refundar a República brasileira, que havia se corrompido com o militarismo dos primeiros governos e o liberalismo ilusório de uma Constituição que as elites civis desrespeitavam por meio de fraudes eleitoriais. Aderia assim à denúncia da política dos governadores e à pregação pela revisão constitucional do deputado e jornalista Júlio de Mesquita e do grupo reunido, a partir de 1901, em torno do jornal O Estado de S. Paulo e da dissidência do Partido Republicano Paulista.
Acusou, em Os sertões, o Exército, a Igreja e o governo pela destruição da cidade e fez a autocrítica do patriotismo exaltado de suas reportagens. Reconheceu a omissão de sua cobertura da guerra, ao relatar o massacre dos prisioneiros sobre o qual antes calara. Criticou ainda o confronto entre Canudos e a Vendéia, que empregara em seus artigos, e descartou a idéia de uma conspiração política, apoiada por grupos monárquicos e por países estrangeiros, que havia justificado o massacre.
Abriu o livro com um vôo panorâmico sobre o planalto brasileiro, que se inicia nas escarpas do litoral ao Sul e segue pela bacia do rio São Francisco até se aproximar do solo deprimido e revolto do vale do Vaza-Barris. O movimento descendente do narrador se aproxima da visão do poeta de "O navio negreiro" (1868), de Castro Alves, que observa do alto as ondas do oceano até baixar, nas asas do albatroz, ao tombadilho ensangüentado da embarcação, em que se encontram os escravos acorrentados.
Adotou uma concepção naturalista, baseada no historiador francês Hippolyte Taine, que lhe forneceu a base científica, ou o pretexto, para buscar correspondências poéticas entre os fatos narrados e a paisagem à sua volta. Tais concepções naturalistas deram um verniz de ciência à sensibilidade romântica que formara na juventude. Percebia, de forma dramática, o conflito entre natureza e história e procurava entender, em termos artísticos e científicos, os modos de interação entre ambas.
Taine considerou, na Histoire de la littérature anglaise [História da literatura inglesa] (1863), que a vida de um povo seria determinada por três fatores: o meio, ou o ambiente físico e geográfico; a raça, responsável pelas disposições inatas e hereditárias; e o momento, resultante das duas primeiras causas. Esse modelo também foi seguido por Sílvio Romero em sua História da literatura brasileira (1888), que tomou a literatura do Brasil como expressão da natureza e do povo, explicando o seu surgimento a partir da ação diferenciadora do mestiço.
Euclides dividiu o livro em três partes, correspondentes aos fatores apontados por Taine: "A terra", "O homem" e "A luta". Tratou, em "A terra", da geologia e da geografia do sertão, incluindo o clima do semi-árido, a vegetação da caatinga e a problemática das secas que assolam a região. Recriou, numa versão laica do Gênesis, mundos revoltos e instáveis, varridos por mares pré-históricos e por labaredas de proporções bíblicas. Desceu às camadas profundas do solo e recuou até a origem do continente e de seus habitantes, para explicar a irrupção quase vulcânica do Conselheiro e de seus seguidores.
Abraçou idéias controversas dos geólogos Emmanuel Liais e Frederic Hartt sobre a formação recente do sertão baiano, que considerou ser o fundo recém levantado de um mar extinto, cujo solo conturbado revelaria a "agitação das ondas e das voragens". Criou uma fantasia geológica sobre a existência pré-histórica de mar na região de Canudos, o que prenunciaria as profecias atribuídas ao Conselheiro de que o sertão iria virar praia, com a esperança de uma inversão climática capaz de trazer a redenção.
Mostrou a interação entre os elementos, como a água e o fogo, que se revezam na criação e na destruição do sertão. Afastou-se, em parte, do determinismo geográfico, ao admitir a possibilidade do homem amenizar os efeitos das secas pela construção de açudes e canais, tomando, como exemplo, a atuação dos romanos e dos franceses na Tunísia. Criticou também a devastação do meio-ambiente pelas queimadas que o colonizador ganancioso aprendera com o indígena, assumindo o papel de "terrível fazedor de desertos". Capaz de criar desertos, o homem poderia também extingui-los, corrigindo o passado. Encerrou seu relato com o lamento pelos rebeldes, dizimados a ferro e fogo, abatidos pelas balas e facas dos soldados e incinerados pelas bombas de dinamite e tochas de querosene, que reduziram Canudos a cinzas.
"Barbaramente estéreis", "maravilhosamente exuberantes", os sertões formam, para o autor, uma categoria geográfica própria, paradoxal e antitética, capaz de oscilar entre a aridez das estepes e desertos e a abundância dos vales férteis. Procurou recriar tais variações climáticas pelo ritmo binário, pelas repetições sonoras e sintáticas e pelas acelerações rítmicas, freqüentes em sua descrição da natureza, que personificou como participante da luta. O "martírio do homem", submetido à violência das estiagens prolongadas, seria apenas o reflexo de uma tortura maior: "Nasce do martírio secular da Terra..."
Tomou a natureza dos sertões como cenário ou símbolo, que projeta sombras e imagens sobre a narrativa. A vegetação da caatinga, com galhos secos e contorcidos, permitiria antever o sacrifício dos sertanejos degolados pelos soldados. As flores rubras das cabeças-de-frade, deselegantes e monstruosas, lembravam "cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica". As palmatórias-do-inferno, "diabolicamente eriçadas de espinhos", evocariam a paixão de Cristo e o sacrifício dos conselheiristas.
Discutiu, em "O homem", as origens do homem americano, a formação racial do sertanejo e os malefícios da mestiçagem. Construiu uma teoria fatalista do Brasil, cuja história seria movida pelo choque entre etnias e culturas destinadas ao desaparecimento. Recorreu às concepções do sociólogo austríaco Ludwig Gumplowicz (1838-1909), que considerava a história guiada pelo conflito entre raças, do qual resultaria o esmagamento inevitável dos fracos pelos fortes. Alarmado com o avanço da cultura estrangeira, lançou um brado de alerta em Os sertões: "Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos".
Seguia teorias raciais, baseadas na crença na inferioridade dos não-brancos, que davam ares de ciência ao preconceito de cor. Explicou a guerra como o resultado do choque entre os curibocas do sertão, formados de brancos e índios, e os mestiços do litoral, tidos como neurastênicos e desequilibrados pela mistura entre brancos e negros. Glorificou o mestiço do sertão, que apresentaria vantagem sobre o mulato do litoral, devido ao isolamento histórico e à ausência de componentes africanos, que tornariam mais estável sua evolução racial e cultural. "O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral".
Elevou o homem do sertão, vítima do ataque das forças republicanas, à altura dos grandes heróis dos poemas épicos e dos romances de cavalaria. Retratou-o como vaqueiro envolto em gibão de couro, de modo semelhante a um titã grego ou a um guerreiro antigo coberto por armadura. Em uma passagem antológica de "O homem", descreveu o estouro da boiada com uma tal concentração de recursos expressivos, de ordem sonora, sintática e rítmica, que os milhares de animais desgovernados acabaram transfigurados em um único corpo, monstruoso e fantástico, sobre o qual se lança o vaqueiro em disparada. Caracterizou ainda o homem do sertão como centauro, pela simbiose com a montaria, imagem que já fora empregada, junto com as alusões à cavalaria medieval, por José de Alencar no romance O sertanejo (1876).
Euclides imaginou o sertanejo como o resultado da confluência entre a bravura indígena e a ousadia dos bandeirantes paulistas, que penetraram pelos rios Tietê e São Francisco rumo ao interior, expandindo o território da colônia portuguesa nos séculos XVII e XVIII. O curiboca do sertão é tomado como o resultado da união entre os desbravadores vindos de São Paulo e os indígenas oriundos do continente americano. Tipo autônomo, aventureiro e rebelde, responsável pela integração nacional, o paulista abarcaria não só os habitantes de São Paulo, mas os filhos dos estados do Sul e do Centro-Sul, incluindo Rio de Janeiro e Minas Gerais!
Difundiu, em Os sertões, junto com o mito do sertanejo, uma outra representação análoga, o mito do bandeirante, que foi depois retomada por Afonso d’Escragnolle Taunay, em História geral das bandeiras paulistas (1924-50), por Oliveira Viana, em Populações meridionais do Brasil (1920), e por Alfredo Ellis Júnior, em Raça de gigantes (1926). Do cruzamento entre brancos e índios teria resultado, segundo Ellis Júnior, uma "sub-raça superior", cujo caráter guerreiro e individualista lançou as bases da hegemonia paulista.
Seguindo as teorias do geólogo canadense Charles Frederic Hartt sobre uma suposta origem autóctone do homem americano, Euclides criou uma imagem grandiosa do homem do sertão como ser autêntico, enraizado no solo, com cultura própria e evolução autônoma garantidas pelo isolamento geográfico. Chamou assim o sertanejo de "rocha viva" da nacionalidade, base sobre a qual se poderia criar o brasileiro do futuro. Traçava a analogia entre o granito, composto de três minerais, e o povo brasileiro, resultante da mistura de branco, índio e negro, que expôs nas notas à segunda edição. A imagem se inscreveu no texto de Os sertões no mesmo período em que escavava, como engenheiro de obras, o leito do rio Pardo em busca da rocha granítica que lhe permitiria reconstruir em fundamentos sólidos a ponte metálica que ruíra.
Finalmente, em "A luta" e nos capítulos seguintes, narrou os acontecimentos da guerra, que levaram à destruição da comunidade, realizada em nome da consolidação da ordem republicana. Procurou mostrar como os dois lados do conflito – o litoral e o sertão – se encontravam tomados por fanatismos religiosos e políticos. Os soldados saudavam a memória do marechal Floriano Peixoto, morto dois anos antes, cuja efígie traziam no peito, com o mesmo entusiasmo doentio com que os jagunços bradavam pelo Bom Jesus. O coronel Moreira César, comandante da terceira expedição, líder epiléptico dos florianistas, é tido como tão desequilibrado quanto o Conselheiro. Ambos refletiriam a instabilidade dos primórdios da República.
Euclides viu o sertão como reflexo do litoral: a barbárie estaria por toda parte. Tal nota pessimista encontrou expressão nas inúmeras antíteses, que indicam suas próprias hesitações no julgamento da guerra. Canudos é a "Tróia de taipa dos jagunços", misto de cidadela inexpugnável e de labirinto de casebres de barro, cuja luta evocaria os feitos épicos cantados por Homero. O sertanejo é um herói monstruoso, "Hércules-Quasímodo", tão forte quanto desgracioso. Conselheiro um "pequeno grande homem", que entrou para a história, como poderia ter ido para o hospício...
Criticou as jornadas jacobinas no Rio de Janeiro, em março de 1897, quando multidões reagiram à notícia da derrota da terceira expedição contra Canudos com a destruição de jornais monárquicos e o assassinato de um jornalista. Considerava os manifestantes da rua do Ouvidor, centro do comércio elegante e das redações de jornais, mais perigosos do que o homem do sertão: são "trogloditas completos", "enluvados e encobertos de tênue verniz de cultura". E observou: "O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral".
O sertão vai virar mar
Os sertões é uma obra híbrida que transita entre a literatura, a história e a ciência, ao unir a perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, à construção literária, marcada pelo fatalismo trágico e por uma visão romântica da natureza. Euclides recorreu a formas de ficção, como a tragédia e a epopéia, para compreender o horror da guerra e inserir os fatos em um enredo capaz de ultrapassar a sua significação particular. A epopéia gloriosa da República brasileira, pela qual combatera na juventude, adquiriu caráter de tragédia na violenta intervenção militar que testemunhou em Canudos.
Dizia ser ele próprio um "misto de celta, de tapuia e grego", para falar do encontro entre sua educação brasileira e a cultura greco-francesa, que o levara à poesia romântica, à ciência naturalista e à retórica clássica, cujos recursos empregou, de forma por vezes exagerada, para amplificar, com grande riqueza vocabular, as inúmeras alusões, comparações e metáforas que empregou. Em carta ao poeta Vicente de Carvalho, de fevereiro de 1909, referiu-se à fatalidade como a "Maldade obscura e inconsciente das coisas", que inspirou a concepção trágica dos gregos.
Pensou a história a partir dos fatores naturais, estudados pela ciência, e de forças obscuras e ancestrais, assunto da poesia e do mito. Projetou sobre o Conselheiro muitas de suas obsessões pessoais, como o temor da irracionalidade, da sexualidade e da anarquia, para criar um personagem trágico guiado por forças obscuras e ancestrais e por maldições hereditárias, que o levaram à insanidade e ao conflito com a ordem. Viu Canudos como desvio histórico capaz de ameaçar a "linha reta" que se impusera desde a juventude.
Gilberto Freyre já tinha observado que a natureza que transborda de Os sertões é aquela que a personalidade angustiada do escritor precisou de exagerar para se completar e se exprimir. Euclides transfigurava, pela força da imaginação, a paisagem à sua volta, vendo por toda parte miragens e espectros que remetiam à mitologia, à história e à literatura. As serras de pedra do Cambaio, por exemplo, que as tropas da segunda coluna, sob o comando do general Savaget, tiveram que atravessar sob tiroteio, lhe lembravam velhíssimos castelos ou fortalezas de titãs em ruínas.
Os sertões se destacou, em meio à enxurrada de livros sobre Canudos, graças à preocupação estilística de seu autor, que fez mais de dez mil emendas nas três edições que lançou em vida, quase todas de ortografia, vocabulário e sintaxe, sem se importar em corrigir alguns enganos factuais. O livro ganhou permanência pela escrita poética e imagética, ainda que se encontrem hoje superados muitos de seus aspectos científicos, como as hipóteses geológicas e as teorias raciais, e parte da reconstrução histórica, marcada por uma visão negativa e mesmo preconceituosa de Canudos e da atuação do Conselheiro.
Euclides abordou Canudos como comunidade primitiva, "urbs monstruosa", dominada pela desordem e pelo crime. Viu o povoado como um ajuntamento caótico e repugnante de casas, onde haveria o amor livre e o coletivismo dos bens. Revelou o mesmo distanciamento ao comentar as profecias, que julgou serem do Conselheiro, e as quadras de poesia popular, recolhidas junto às ruínas da comunidade. Eram, para ele, "pobres papéis", com "ortografia bárbara" e "escrita irregular", que revelariam o "pensamento torturado" dos sertanejos.
Transcreveu, em uma caderneta, duas narrativas em versos sobre a guerra e duas profecias apocalípticas, que seriam depois citadas em Os sertões. As profecias contêm uma visão escatológica, anunciando o fim do mundo e a criação do Reino dos Céus na terra, em que os conflitos sociais e políticos seriam superados pela unificação dos homens sob a autoridade divina: "um só pastor e um só rebanho". O sertão viraria "praia", expressão que designa as zonas úmidas entre o litoral e o semi-árido, tornando-se terra de promissão, com fartura de carne e peixe: "Em 1896 há de rebanhos mil correr da praia para o sertão; então o sertão virará praia e a praia virará sertão".
Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, reuniu seus sermões em dois volumes manuscritos, a que Euclides não teve acesso quando redigiu o livro. Tais prédicas, que só foram publicadas em 1978 por Ataliba Nogueira, mostram um líder religioso muito diferente do fanático místico ou do profeta milenarista retratado em Os sertões. Revelam um sertanejo letrado, capaz de exprimir, de forma articulada, suas concepções políticas e religiosas, que se vinculavam a um catolicismo tradicional, corrente na Igreja do século XIX.
A partir das fontes orais que recolheu, Euclides recriou o imaginário coletivo dos seguidores do Conselheiro. Propôs uma outra interpretação de Canudos, não como centro de uma conspiração monárquica, mas enquanto comunidade messiânica, em que haveria a espera do rei português d. Sebastião, que voltaria, com seus exércitos, para derrotar as forças da República. Foi assim revivido no Belo Monte o mito do retorno glorioso de d. Sebastião, morto em batalha em 1578, na tentativa de expandir os domínios portugueses na África. O sebastianismo se manteve em Portugal até o século XIX e se manifestou no Brasil em movimentos messiânicos, como na Cidade do Paraíso Terrestre e em Pedra Bonita, ambos em Pernambuco, ou no Contestado, no sul do país.
As profecias sebastianistas e apocalípticas, que Euclides incorporou a Os sertões, ganharam nova ressonância em Deus e o Diabo na terra do sol (1963), do cineasta Glauber Rocha. No filme, tais profecias ressurgiram pelas falas do beato Sebastião, que contém traços dos líderes de Canudos e de Pedra Bonita, e na trilha sonora composta por Sérgio Ricardo: "O sertão vai virar mar/ e o mar vai virar sertão". Glauber converteu os presságios recolhidos por Euclides em estribilho revolucionário, que celebra a reforma agrária e a redenção política, simbolizadas pelas ondas do vasto mar, para onde corre o vaqueiro Manuel na apoteótica cena final.
A tragédia da Piedade
Euclides da Cunha morreu, em 15 de agosto de 1909, no bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, em tiroteio com os cadetes Dinorá e Dilermando de Assis, amante de sua mulher. Dilermando levou quatro tiros e seu irmão Dinorá foi atingido e ficou mais tarde paralítico, cometendo o suicídio. Sete anos depois, Dilermando matou Euclides da Cunha Filho, o filho preferido do escritor, que tentara vingar a morte do pai.
Como o Conselheiro, Euclides teve um fim trágico e sucumbiu ao mesmo código de honra que vitimara, no Ceará, a família do futuro líder de Canudos. Ambos foram construtores itinerantes, um de pontes e estradas, o outro de igrejas e cemitérios. Os dois tiveram o destino marcado pelo adultério das esposas e pelas posições de adesão ou de rejeição que tomaram frente à República.
O médico e escritor Afrânio Peixoto fez a autópsia do engenheiro-escritor e retirou o seu cérebro, que ficou conservado em formol no Museu Nacional até 1983, quando foi enterrado em Cantagalo, sua cidade natal, no estado do Rio de Janeiro. Tratava-se, segundo o antropólogo Roquette-Pinto, de um órgão notável pela riqueza e complexidade das circunvoluções, sobretudo na zona que governa as faculdades de expressão.
Euclides ironizou, nas páginas finais de Os sertões, Nina Rodrigues, da Faculdade de Medicina da Bahia, como o representante da ciência encarregada de dar a "última palavra" sobre Canudos. A cabeça do Conselheiro foi tirada de seu cadáver e enviada a Rodrigues, que chegou à conclusão de que era o crânio "normal" de um mestiço, sem traços de anomalia ou degeneração. Tal exame confirmaria o diagnóstico psiquiátrico de que a rebelião de Canudos teria resultado do contágio de uma população fetichista por um delirante crônico. O crânio do messias e o cérebro do escritor despertaram o interesse dos legistas e dos antropólogos da época, em busca dos traços físicos e anatômicos do crime ou do estilo.
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EUCLIDES DA CUNHA

GILBERTO FREYRE
Perfil de Euclides e outros perfis. 2ª ed. aumentada. Rio de Janeiro, Record, 1987. p. 17-69
1. Engenheiro físico alongado em social e humano
Do nome de Euclides da Cunha ninguém sabe separar o do seu maior livro: Os sertões. Mas daí não se deve concluir que Euclides tenha sido um desses autores de obra única e gloriosa da qual se tornam, pelo resto da vida e depois de mortos, uma espécie de maridos de professora.
Ele vive principalmente pela sua personalidade, que foi criadora e incisiva como poucas. Maior que Os sertões.
Seria um erro ver na paisagem do grande livro de Euclides um simples capítulo de geografia física e humana do Brasil que outro poderia ter escrito com maior precisão nas minúcias técnicas e maior clareza pedagógica de exposição. A paisagem que transborda d 'Os sertões é outra: é aquela que a personalidade angustiada de Euclides da Cunha precisou de exagerar para completar-se e exprimir-se nela; para afirmar-se - junto com ela - num todo dramaticamente brasileiro em que os mandacarus e os xiquexiques entram para fazer companhia ao escritor solitário, parente deles no apego quixotesco à terra e na coragem de resistir e de clamar por ela.
Resistir quando todos desistem. Resistir sempre. Clamar no deserto. Clamar pelo deserto. De modo que é Euclides, mais do que a paisagem, que transborda dos limites de livro científico d'Os sertões, tornando-o um livro também de poesia, uma espécie daqueles romances de Thomas Hardy em que a paisagem está sempre entre os personagens do drama, uma como mensagem de profeta preocupado, como outrora os hebreus, com o destino de sua gente e com as dores do seu povo. Preocupado com esse destino e com essas dores através da paisagem sertaneja, para ele menos um tema de materialismo geográfico que um problema do que hoje se chamaria ecologia humana. Também um problema de política e de ética.
O sr. Afrânio Peixoto, em discurso acadêmico, definiu com nitidez a paisagem fixada no livro pouco pedagógico de Euclides da Cunha: "...cenário desmedido e grandioso, rude e magnífico, em que viveu, sofreu e pensou a personagem silenciosa que não se descreve e está sempre presente naquelas páginas... Não é livro de história, estratégia ou geografia, é apenas o livro que conta o efeito dos sertões sobre a alma de Euclides da Cunha".
O Euclides que em 1897 se defrontava com os sertões era ainda um adolescente no incompleto da personalidade, no indeciso das atitudes. Um adolescente que vinha do litoral e de sua civilização, cheio de mãos esquerdas diante dos homens já feitos e das cidades já maduras da beira do Atlântico. Precisando do ermo para sentir-se à vontade. Precisando do deserto para acabar de formar-se no meio do inacabado da colonização pastoril, sem se sentir olhado, observado ou criticado pelos escritores convencionais do Rio de Janeiro. Estes que o aceitassem depois de formado a seu jeito - que não seria decerto o deles, escritores demasiadamente à francesa e à inglesa, una - os melhores; outros "gregos" ou "helenos"; ainda outros castiçamente portugueses, os ouvidos cheios de algodão para não recolherem nenhuma estridência brasileira, nenhuma palavra brutalmente viva que viesse da rua, ou dos restos de senzalas, ou dos sobejos de índios que os compêndios de história do Brasil diziam ter habitado um dia não só os sertões como o litoral brasileiro.
Era o tempo em que o velho Machado, escondendo-se por trás de personagens sempre brancos, ioiôs sempre finos, se fazia adivinhar no humour dos seus romances - talvez os mais profundos que já se escreveram na língua portuguesa - quase um inglês tristonho desgarrado nos trópicos, embora resignado à doçura da vida suburbana de chá com torrada, partidas de gamão e modinhas ao piano, nos sobrados velhos e nas chácaras cheias de escravos e de árvores do Rio de Janeiro de dom Pedro 1l. 0 tempo em que Joaquim Nabuco ao retratar-se menino fidalgo no terraço da casa-grande de Massangana, em páginas de saudade profundamente viril que hão de ficar para sempre em nossa literatura, arredava da vista do leitor, com um pudor de memorialista vitoriano, o que parecesse mais cruamente brasileiro, só faltando fantasiar as jaqueiras exuberantes e quase obscenas de Pernambuco de olmos ascéticos de algum recanto do Norte, não do Brasil, mas da Inglaterra ou da Nova Inglaterra. O tempo de Coelho Neto, de Olavo Bilac, de doutor Francisco de Castro, de B. Lopes, de Domício da Gama, de Alphonsus de Guimaraens, da estréia de Afrânio Peixoto, dos primeiros triunfos de Graça Aranha. O tempo em que Afonso Arinos descrevendo cenas dos sertões mineiros não conseguia se identificar com os aspectos mais antieuropeus da paisagem e da vida sertanejas, permanecendo diante delas o mesmo simpatizante que Eduardo Prado ou o visconde de Taunay.
Desgarrado do "equilíbrio helênico", do "humour inglês", da "elegância renaniana", um ou outro Silvio Romero com os seus modos reiúnas de matutão zangado, suas explosões de mau gosto de bacharel em direito influenciado pelo "germanismo" de Tobias, seu arrivismo de sergipano; mas ao mesmo tempo animado daquele "são brasileirismo" que já levantara obra crua mas monumental: a História da literatura brasileira. Um ou outro Raul Pompéia, arrepiando o português acadêmico com arrojos de estilo menos castiço, descasando substantivos e adjetivos convencionalmente unidos para juntá-los em combinações quase escandalosas de novas. Um ou outro Alberto Torres mais desembaraçado de doutrinas européias nos seus estudos sobre a formação social do Brasil.
Ao helenismo do tempo, ao academismo renaniano, à imitação do humour inglês - que em Machado foi assimilação genial - Euclides não escaparia de todo. Há dele uma declaração expressiva: que se sentia ao mesmo tempo tapuia, celta e grego. Mas já era muito, em plena época de Coelho Neto e B. Lopes, admitir um escritor vitorioso no Rio de Janeiro que fosse um terço tapuio, e não completamente heleno.
O pretendido helenismo dificilmente se encontra em Euclides da Cunha. Se o autor se faz sentir em tantas cenas d'Os sertões - quase no livro inteiro - é pela sua identificação - esta, sim, profunda - com a dor do sertanejo e com a tristeza - antes asiática ou norte-africana do que européia - da vegetação regional; e nunca por superioridades sutis de "grego" ou "heleno" perdido entre os mandacarus. Aqueles mandacarus a princípio "tesos triunfalmente enquanto por toda a banda a flora se deprime"; depois "constantes, uniformes, idênticos"; mas resistindo sempre à "ardência do sol" e dos "areais queimosos" dos sertões. Mandacarus, xiquexiques, "cabeças de frade" - estas uns "deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal" recortadas pelo estilista com requintes de purismo geométrico.
Era natural que nos "areais queimosos" dos sertões Euclides parasse para se retratar ossudo e romântico ao lado dos mandacarus, dos xiquexiques, das "cabeças de frade": o seu "reino" era aquele. O "reino" a que ele próprio se havia de referir uma vez, falando meio desdenhosamente de poetas. Dessas suas palavras se serviria um tanto irônico o geólogo John Casper Branner, com o aplauso do sr. Afrânio Peixoto, para fazer o elogio do poeta d 'Os sertões e a crítica incisiva do seu livro: "o poeta é soberano no pequeno reino onde o entroniza a sua fantasia".
Os sertões foram, na verdade, o reino do poeta Euclides da Cunha. Sua Pasárgada, como diria Manuel Bandeira. Antes de Euclides a paisagem brasileira tivera entre os poetas e os romancistas os seus simpatizantes e até entusiastas: o maior deles José de Alencar. O autor d 'Os sertões foi o primeiro caso de verdadeira empatia. Simpatia só, não: empatia. Ele não só acrescentou-se aos sertões como acrescentou os sertões para sempre à sua personalidade e ao "caráter brasileiro", de que ficou um dos exemplos mais altos e mais vivos. Uma espécie de mártir.
Foi nos sertões que as centenas de mãos esquerdas do magricela desajeitado que já entortara uma espada num instante de fúria - e talvez centenas de penas noutros momentos de raiva menos espetaculosa - começaram verdadeiramente a se disciplinar sob uma vocação poderosa: a de escritor em função da "paisagem brasileira" que ficou sendo para ele mais do que a "imagem da República" - que também teve para Euclides um sentido místico - uma espécie de prolongamento da imagem materna e ao mesmo tempo da própria.
Inmpossível separar Euclides dessa paisagem-mãe que se deixou interpretar por ele, e pelo seu amor e pelo seu narcisismo, como por ninguém.
Na descrição dos sertões, o cientista erraria em detalhes de geografia, de geologia, de botânica, de antropologia; o sociólogo, em pormenores de explicação e de diagnóstico sociais do povo sertanejo. Mas para o redimir dos erros da técnica, havia em Euclides da Cunha o poeta, o profeta, o artista cheio de intuições geniais. O Euclides que descobrira na paisagem e no homem dos sertões valores para além do certo e do errado da gramática da ciência.
O poeta viu os sertões com um olhar mais profundo que o de qualquer geógrafo puro. Que o de qualquer simples geólogo ou botânico. Que o de qualquer antropologista.
O profeta clamou pelos sertões: deu-lhe um significado brasileiro, ao lado do puramente paisagístico, do indistintamente humano.
O artista os interpretou em palavras cheias de força para ferir os ouvidos e sacolejar a alma dos bacharéis pálidos do litoral com o som de uma voz moça e às vezes dura, clamando a favor do deserto incompreendido, dos sertões abandonados, dos sertanejos esquecidos.
Porque ele foi a voz do que clamou a favor do deserto brasileiro: endireitai os caminhos do Brasil! (O Brasil era o seu "Senhor"). Os caminhos entre as cidades e os sertões. Esta foi a grande mensagem de Euclides: que era preciso unir-se o sertão com o litoral para salvação - e não apenas conveniência - do Brasil. O sertão era "salvador": salvador dele, Euclides, e salvador do Brasil. Mensagem transmitida aos homens da República de 89 em palavras de artista interessado pela política. Mensagem deformada depois pelos que fizeram dos sertões em si - e não de sua comunicação com o litoral agrário - quase uma mística, uma espécie de seita protestante que acredita poder salvar o Brasil com a água dos açudes do Nordeste - nos quais se têm talvez empregado somas em desproporção com o seu valor social para a nação brasileira.
Nem o poeta, nem o profeta, nem o artista me parece que turvam n Os sertões ou noutro qualquer dos grandes ensaios de Euclides da Cunha-as qualidades essenciais de escritor adiantadíssimo para o Brasil de 1900 que ele foi: escritor fortalecido pelo traquejo científico, enriquecido pela cultura sociológica, aguçado pela especialização geográfica.
Aquelas qualidades científicas, quem às vezes as diminui no autor d Os sertões comprometendo-as na sua essência, é o orador perdido de amor - amor físico - pela palavra simplesmente bonita ou rara; o orador que a formação científica de Euclides da Cunha não conseguiu esmagar nunca no grande sensual das frases sonoras, deslumbrado desde os dias de colégio, desde o tempo de menino criado em fazenda - quando, informa o sr. Elói Pontes, discursava aos bois no fim das tardes quietas do Rio de Janeiro - pelo efeito das frases, das palavras, dos polissílabos, primeiro sobre os ouvidos, depois sobre os olhos pervertidos em ouvidos. Daí a exagerada sensualidade verbal, a ênfase anticientífica e também antiartística em que às vezes se empasta sua palavra nem sempre a serviço fiel dos seus olhos: traindo-os às vezes para seguir os ouvidos ou a imaginação de adolescente.
Em Euclides, a tendência foi quase sempre para engrandecer e glorificar - como nas óperas - as figuras, as paisagens, os homens, as mulheres, as instituições com que se identificava. Engrandecer, alongando: à sua imagem, talvez. Menos, porém, ao herói individual que ao tipo heróico. Principalmente o tipo heróico em função da paisagem brasileira do centro. O vaqueiro, o sertanejo, o seringueiro, o próprio jagunço. Até mesmo o negro dos sertões - sobrevivência do quilombola colonial - sai engrandecido de suas páginas .
Nesse gosto de fixar tipos heróicos em função das paisagens - ou antes, da "paisagem", para ele como que mística do Brasil mediterrâneo - ninguém o excede. Espera o instante de tensão heróica, o momento extremo de sacrifício ou de agonia, para surpreender no brasileiro anônimo, no sertanejo vulgar, até no caboclo desconhecido, "as linhas terrivelmente esculturais" em que a resistência ao sol, à coragem, à dor, à doença ou simplesmente à fome os alongue em figuras de grandes de Espanha. Exagera então os alongamentos, os ângulos, os relevos. Ao sertanejo, espera quase voluptuosamente que se empertigue, que estadeie todos os seus relevos e todas as suas linhas, que corrija "numa descarga nervosa instantânea todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos" para exaltar na "figura vulgar do tabaréu canhestro" - afidalgada por aquele instante de tensão escultural - "o titã acobreado e potente". Ao cavalo do alferes Vanderlei, surpreende-o morto, com todos os relevos de cavalo ossudo de dom Quixote. Da moça sertaneja alongada pela fome e dramatizada pela dor, que encontra em Canudos, delicia-se em destacar o perfil anguloso: "uma beleza olímpica.... na moldura firme de um perfil judaico, perturbados embora os traços impecáveis pela angulosidade dos ossos apontados duramente no rosto emagrecido...." "Perturbados embora", mas sem essa perturbação, teriam merecido o interesse do estilista obcecado pelo gosto da angulosidade, para ele como que identificada com a altivez, a nobreza, o brio - com ele próprio, Euclides da Cunha?
Mais ainda: de um negro, capanga do Conselheiro, faz um mártir; e um mártir de proporções monumentais que, com música de ópera daria uma figura wagneriana. Coerente com a sua técnica, o seu método, o seu gosto de literatura escultural e de música dramática, espera que o preto desconhecido morra ao laço para o surpreender já "feito estátua" - símbolo de uma raça inteira e expressão de protesto contra quatro séculos de civilização escravocrata. Fixa então o preto em toda a glória de sua "plástica estupenda": "...viriam transmudar-se o infeliz, apenas dados os primeiros passos para o suplício. Daquele arcabouço denegrido e repugnante, mal soerguido nas longas pernas murchas, despontaram repentinamente linhas admiráveis - de uma plástica estupenda. Um primor de estatuária modelado em lama. Retificara-se de súbito a envergadura abatida do negro aprumando-se, vertical e rígida, numa bela atitude singularmente altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre os ombros, que se retraíram dilatando o peito, alçada num gesto desafiador de sobranceria fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe a fronte Surgiu impassível e firme; mudo, a face imóvel, a musculatura gasta duramente em relevo sobre os ossos, num desempeno impecável, feito estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa ruinaria de Canudos".
Sente-se aí, como noutros arrojos de síntese do autor d'Os sertões, aquele encanto pela técnica da escultura que ele próprio confessa: "é que a escultura, sobretudo a escultura heróica, tem por vezes a simultaneidade representativa da pintura, de par com a sucessão rítmica da poesia ou da música". Mas para isso - salienta Euclides no seu ensaio "A vida das estátuas" - o escultor - e poderia ter acrescentado: o escritor que imita o escultor na sua técnica - não deve destacar nas figuras "um caráter dominante e especial, senão que também o harmonize com um sentimento dominante e generalizado". A tendência para o monumentalismo que quase nunca o abandona. Da paisagem quase sem relevo dramático nenhum, nem traço monumental dos canaviais da vizinhança de Pojuca ele recorta apenas as "miríades de folhas refletindo ao sol com um brilho de aço antigo"; a casa-grande, mal a observa, desinteressado talvez do gordo, do "terrivelmente chato", do liricamente brasileiro, do acachapadamente patriarcal de sua arquitetura.
Toda a obra de Euclides está cheia de flagrantes de atitudes heróicas oferecidos pelos homens e até pelos animais e pelas árvores nos seus momentos de resistência, de dor, de sacrifício, de fome. Flagrantes surpreendidos pelo olhar arregalado do estilista mais dominado pelo sentido escultural da figura humana e da natureza selvagem que já escreveu no Brasil e talvez em língua portuguesa. Flagrantes e idealizações. Idealizações sob a forma - que chega a sugerir certo narcisismo mórbido - de alongamentos grecóides. Aliás, ele chega a parecer um irmão mais novo e desgarrado na literatura não só de El Greco como de Alonso Berruguete: o Berruguete que na Espanha do século XVI quis exprimir em escultura "toda a força das emoções fundamentais", acentuando a ossatura dos membros, as cabeças das falanges dos dedos, os ligamentos que só o anatomista conhece nas mãos e nos pés dos homens.
A Euclides como que repugnava na vegetação tropical e na paisagem dominada pelo engenho de açúcar o gordo, o arredondado, o farto, o satisfeito, o mole das formas; seus macios como que de carne; o pegajento da terra; a doçura do massapê. Atraía-o o anguloso, o ossudo, o hirto dos relevos ascéticos ou, quando muito, secamente masculinos do "agreste" e dos "sertões". Dos tipos e dos cenários sertanejos, ele destaca os relevos mais duramente angulosos, em palavras também duras, quase sem fluidez nenhuma e como que assexuais. Palavras às vezes enfeitadas de arabescos glorificadores, exageros de idealização monumental, lugares-comuns de geometria oratória: "beleza olímpica", "primor de estatuária", "linhas ideais de predestinado", "olhar, num lampejo viril, iluminando-lhe a fronte". Nunca porém sem seu relevo. Sempre impressionantes e quase sempre vigorosos - de um vigor novo na língua: um vigor escultural.
Porque ele é, na verdade, uma espécie de El Greco ou de Alonso Berruguete da prosa brasileira: tira das palavras o máximo de recursos esculturais, embora com sacrifício, mais de uma vez, de qualidades de discriminação e de inflexão - as grandes qualidades, entre os mestres brasileiros seus contemporâneos, de Machado, de Nabuco e do próprio Pompéia. Qualidades quase impossíveis dentro do gosto do brônzeo, do escultural, do geométrico, do hirto, do anguloso, em que Euclides se requinta como sob o domínio de uma obsessão quase mística: a de evitar a carne, suas curvas, sua inconstância, o momento que passa, a banalidade quotidiana.
Precisamente no Diário de uma expedição, com que o editor José Olímpio iniciou a publicação, em volumes da Coleção Documentos Brasileiros, de crônicas, apontamentos, cartas e até versos do grande escritor brasileiro, inéditos ou dispersos pelos jornais, é que Euclides se revela menos escultural na técnica de escrever e de interpretar tipos e cenários nos seus momentos grandiosos e nos seus aspectos heróicos; e mais fluido, ao mesmo tempo que o menos intolerante do quotidiano.
Porque mesmo nessas notas de repórter ele se mostra o escritor que procura fazer parar as figuras nos seus momentos artística ou, antes, esculturalmente mais expressivos e também mais dramáticos, para os descrever parados e em plena pompa de suas linhas. Que procura fazer parar o próprio sol dos sertões; descrevê-lo como que parado: "reverberando nas rochas expostas, largamente refletido nas chapadas desnudas, sem vegetação, ou absorvido por um solo seco e áspero de grés" num daqueles meios-dias sertanejos "mais silencioso e lúgubre que as mais tardias horas da noite".
As palavras saem-lhe, porém, nas cartas e nas crônicas, mais soltas; e com umas sem-cerimônias, uns à-vontades, uns abandonos que faltam às páginas como que acabadas, completas, definitivas d'Os sertões. Sente-se nas crônicas um gosto diverso do da obra madura e quase monotonamente lapidar: um gosto com a sua ponta de verde, o seu pico de espontaneidade, embora, de modo nenhum, de improvisação.
Porque com o sr. Rosário Fusco - em recente artigo sobre o Diário de uma expedição - e contra o escritor cintilante mas às vezes arrebatado que é o sr. Agripino Grieco, não acredito na improvisação destas notas, muito menos na d'Os sertões: improvisação afetada por Euclides com certa pacholice de dom-juan que ostentasse sucessos fáceis; com certa gabolice de adolescente. O adolescente ao mesmo tempo acanhado e tonitruante, incompleto e enfático, que não morreu de todo no autor de Canudos. Nem no escritor nem, talvez, no homem. Mas isto é outra história, como diria Kipling.
O que desejo salientar aqui e o que me parece ponto inteiramente tranqüilo na personalidade de Euclides da Cunha é "a dificuldade tremenda" que, segundo um observador atento, "ele tinha em redigir". João Luso acompanhou-lhe uma vez a tortura de estilista redigindo com um vagar de quem fizesse renda um artigo para o Jornal do comércio: "levou aquilo mais de três horas para ocupar no dia seguinte um resumido espaço no jornal".
Aliás o próprio Euclides em página do Diário (Bahia, 21 de agosto) confessa, senão a tortura no escrever, o trabalho penoso de recolher dados pelos arquivos baianos: um "investigar constante acerca do nosso passado vindo intacto quase aos nossos dias, dentro desta cidade tradicional como de uma redoma imensa". Acrescentando: "A poeira dos arquivos de que muita gente fala sem nunca a ter visto, surgindo tenuíssima de páginas que se esfarelam ainda quando delicadamente folheadas, esta poeira clássica - adjetivemos com firmeza - que cai sobre tenazes investigadores ao investirem contra longas veredas do passado, levanto-a diariamente. E não tem sido improfícuo o meu esforço". Confissão sincera e até corajosa para uma época em que, mais do que hoje, o "homem de talento" no Brasil devia afetar, acima de tudo, capacidade de improvisação; isso de se sujar de poeira pelos arquivos, entre livros podres e papéis velhos, era só para os medíocres, para os antiquários, para os desembargadores de província. Confissão que, de certo modo, contradiz o bravado de adolescente, em "caderno íntimo" de que o Grêmio Literário Euclides da Cunha, em sua revista, e a revista de estudantes do Recife, Universidade, em seu número de junho de 1938, publicaram trechos curiosos. Inclusive este: "Escrevi-o [Os sertões] em quartos de hora, nos intervalos de minha engenharia fatigante e obscura". No que talvez tenha se baseado o sr. Agripino Grieco para se referir com entusiasmo às cartas enviadas por Euclides da Cunha para O estado de São Paulo: "escritas sem elementos de consulta, na barafunda da campanha, aos primeiros jatos da emoção tumultuosa".
Uma ou outra nota se destaca daquelas cartas pela "emoção tumultuosa" que verdadeiramente acuse a reportagem pura, em vez da estilização pachorrenta. Assim os oitenta soldados feridos que em carta de 12 de agosto Euclides escreve ter visto saltar do trem na estação de Calçada. Ao estilista como que faltou tempo para fazer parar toda aquela gente ferida em figuras esculturais - embora não esqueça de salientar as "apófises dos ossos" a apontarem dos "corpos depauperados" dos "heróis obscuros". Coxeando, arrastando-se, os oitenta soldados desconhecidos saltam do trem e desaparecem, deixando-se apenas esboçar a lápis pelo repórter emocionado, mas como que frustrado nas suas intenções de síntese, quando não de glorificação escultural daqueles homens já tão sem carne: quase só ossos.
É certo que glorificando tipos em estátuas, Euclides raramente sacrifica neles a verdade essencial: quase sempre acentua-a, simplificando-a ou exagerando-a nas linhas das sínteses arrojadas. Mas esse talento o abandona, quase sempre, diante da interpretação das personalidades isoladas e dos próprios tipos sociais mais densos e mais rebeldes à simplificação. E toda vez que se sente fraco diante de problemas complexos de interpretação de personalidades ou de tipos Euclides resvala no seu vício fatal: a oratória.
A uma frase que faça desaparecer de uma personalidade ou de um tipo curvas indecisas, sob o traço único e imperial de uma generalização ou de uma síntese, ele sacrifica às vezes as contradições, as transições, os contrastes que se agitam dentro de um problema complexo e sutil d psicologia ou de história. Principalmente quando esse problema é o que oferece a psicologia ou a história de uma personalidade ou de um tipo social mais denso. Daí a fraqueza de suas tentativas de caracterização da cidade da Bahia, por exemplo, ao lado de suas sínteses magníficas de paisagens largas e de tipos menos complexos: o do sertanejo ou o do seringueiro.
Seus ensaios sobre personagens isoladas, sobre tipos complexos, concentrados no tempo ou no espaço, não têm a força nem a riqueza psicológica dos outros: sobre assuntos menos definidos. Porque ninguém como Euclides ilustra aquele reparo surpreendente mas exato de um crítico: "É mais fácil não nos enganarmos sobre um país inteiro que sobre uma só personagem."
Euclides está cheio de generalizações violentas: mesmo quando faz o elogio da análise. Assim: "Roosevelt é um estilista medíocre.... Não escreve, leciona. Não doutrina, demonstra. Não generaliza, não sintetiza e não se compraz com os aspectos brilhantes de uma teoria; analisa, disseca, induz friamente, ensina." Mas nunca ninguém pretendera exaltar no primeiro Roosevelt o estilista. Nem as demais afirmativas se ajustam ao famoso político americano que não foi nenhum mestre da análise, nem da indução, nem da demonstração fria mas, ao contrário, antes um intuitivo que um lógico; principalmente um voluptuoso da ação; e na expressão literária - se chegou a ter expressão rigorosamente literária - um orador às vezes lamentavelmente enfático. Os mesmos limites Euclides revela diante de personalidades menos distantes: o seu Moreira César, o seu Carlos Teles, mesmo o seu Floriano, nenhum deles tem o vigor ou a verdade do seu sertanejo ou do seu seringueiro.
Outro dos seus contemporâneos, de quem o ensaísta pretendeu fixar a psicologia, ao lado da de Theodore Roosevelt, e fez apenas a caricatura, foi Guilherme II, em frases sonoras que tanto agradariam a Tristão de Araripe Júnior - um crítico literário que lia com os ouvidos e prejulgava com a vista como certos glutões comem com os olhos e prejulgam com o olfato. Frases que não escondem de um leitor menos sensível aos encantos do verbalismo, uma incapacidade surpreendente, em escritor tão poderoso, para a caracterização - neste caso não só do particular, do definido, do único - a personalidade de Guilherme II - como do geral: o povo alemão. Porque é de uma gente da formação delirantemente romântica e até mística do alemão, que Euclides pretende fazer "a terra clássica do bom senso equilibrado"; do Kaiser, isto é, de Guilherme II - um "neto retardatário das Valquírias" que tivesse subjugado, como por mágica, toda aquela massa formidável de "bom senso equilibrado". Frases de orador que lembram expressões pomposas do grande poeta - também turvado pela oratória - que foi Castro Alves. Grande poeta um tanto desdenhado por Euclides ao se confessar atônito ante aquela "espécie de Carlyle da rima" que "nos abala poderosamente em cada verso, mas cuja ação é infinitamente breve, como a de uma pancada percutindo e morrendo ao fim dos hemistíquios".
A Euclides se poderia talvez fazer reparo semelhante ao que ele opôs ao poeta baiano. Em vários dos seus ensaios e em alguns trechos menos felizes d'Os sertões, o lógico, o intuitivo, o poeta dramático e às vezes trágico - raramente lírico - se deixa vencer pelo orador simplesmente impressionante nos seus arrojos verbais e por isso mesmo de "ação infinitamente breve" sobre os quais os que o lêem menos com os ouvidos do que com a inteligência. A inteligência prevenida contra as sínteses sonoras, as generalizações grandiosas, as sentenças maciças, sem um "talvez", sem um "a não ser que", sem um "entretanto" a quebrar-lhes em curvas - curvas irônicas, às vezes irritantes, mas sempre necessárias - a imponência das retas, tão de sua predileção de construtor de frases imperiais .
O professor Afrânio Peixoto já observou de Euclides da Cunha que "não tinha matizes nem inflexões"; que desconhecia "os meios-tons e as transições insensíveis". Pior ainda: que cultivava "esse mau gosto nacional, espécie de gongorismo retardado, que o povo chama, avisadamente, falar difícil". Wagnerismo literário.
Donde aquele seu vício de adolescente de tomar notas nos punhos da camisa de palavras estranhas e arrevesadas, boas para as grandes orgias dos olhos e dos ouvidos. Orgias às vezes masoquistas: palavras duras, termos requintadamente científicos, expressões terrivelmente técnicas que doessem bem nos olhos e nos ouvidos dos voluptuosos, machucando-os e ferindo-os mas deleitando-os.
Noutro, esses defeitos seriam imensos: em Euclides não. Suas qualidades são tão fortes que toleram a vizinhança de defeitos mortais para qualquer escritor menos vigoroso.
Quem nos deixou, como Euclides da Cunha, páginas que saltam intuições verdadeiramente geniais, não precisa de condescendência de crítico algum. O vulto monumental que levantou de Antônio Conselheiro - não da pessoa do místico, mas do seu tipo de sertanejo isolado da civilização do litoral, de vítima desse isolamento, de monge quase mal-assombrado cercado de beatas, de velhas, de doentes, de brancos, de negros, de caboclos, de centenas de brasileiros pervertidos pelo mesmo isolamento que ele, de asceta terrível dando as costas às mulheres moças e às paisagens macias do lado do mar - permanece obra-prima na literatura brasileira. Mais do que isso: obra-prima de síntese sociológica na língua portuguesa. Seus estudos de problemas de formação territorial, social e política do Brasil vieram esclarecer aspectos importantíssimos de nossos antecedentes e da nossa atualidade. Suas caracterizações da paisagem brasileira dos sertões - paisagem física, paisagem cultural - ilumina-as um seguro critério ecológico, ao lado do senso dramático dos antagonismos que turvam a unidade brasileira.
Da história, como da geografia, ele teve a visão mais larga, que é a social, a humana. Seu mestre Carlyle não o afastou do amor fraternal dos homens, simplesmente homens, para o tornar um devoto exagerado dos heróis. Nos heróis como nos jagunços ele nunca deixou de sentir homens; em Antônio Conselheiro, não deixou de ver o brasileiro nem de sentir o irmão. Nos documentos que estudou, que interpretou, que esclareceu foi sempre o que o interessou mais profundamente: a nota humana, a expressão social, a significação brasileira.
Se tivesse hoje vinte, trinta ou quarenta anos, qual seria a posição de Euclides na vida brasileira e diante dos problemas do nosso tempo? Num "ensaio de revisão" é ponto a que dificilmente se pode fugir. A sra. Carolina Nabuco, em conferência, na Faculdade de Direito do Recife, afirmou daquele grande pernambucano - seu pai - na velhice tão olímpico e tão glorificado por todos mas que na mocidade - e mesmo depois dos trinta anos - fora considerado "agitador", "inimigo do clero" e até "republicano" perigoso: "Meu pai, se fosse moço, hoje, certamente advogaria reformas sociais..." Atalhando, porém, com delicadeza de moça e doçura de brasileiro: "...mas nunca insuflando ódios de classe ou agindo com armas que não fossem a própria convicção dos espíritos". E transcreve de Joaquim Nabuco estas palavras que apesar da expressão "futuro remotíssimo" seriam consideradas hoje pela gente mais tomada de pânico diante do socialismo, terrivelmente radicais: "Só há uma coisa certa, é que num futuro remotíssimo, o proprietário de terra será um ente tão mitológico quanto o proprietário de homens. "
Euclides - que escolheu do Brasil e da vida uma "paisagem" tão diversa da de Nabuco - encara o assunto num dos seus ensaios mais eloqüentes - "Um velho problema" - em que se levanta contra o que chama o "egoísmo capitalista" em tom quase de panfletário. É desse trabalho a página pouco original e até rala na idéia mas caracteristicamente euclidiana pelo vigor de expressão - o estilista tira aí todo o partido poético e estético da terminologia físico-química - de confronto do operário moderno - "esverdinhado pelos sais de cobre e de zinco, paralítico delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos de mercúrio, asfixiado pelo óxido carbônico, ulcerado pelos cáusticos dos pós arsenicais, devastado pela terrível embriaguez petrólica ou fulminado por um coup de plomb" - com "a máquina... íntegra e brunida". Confronto em que se revelaria "a pecaminosa injustiça que o egoísmo capitalista agrava" e no qual estaria "em grande parte a justificativa dos socialistas não chegarem todos ao duplo princípio fundamental: socialização dos meios de produção e circulação; posse individual somente dos objetos de uso".
Tudo indica que tanto Euclides como Nabuco, se fossem homens de trinta anos diante dos problemas de hoje e no Brasil dos nossos dias, estariam entre os escritores chamados indistintamente da "esquerda", embora nenhum deles fosse por temperamento ou por cultura inclinado àquela socialização da vida ou àquela internacionalização de valores que importassem em sacrifício da personalidade humana ou do caráter brasileiro. Ao contrário: aos olhos dos cientificistas do socialismo eles seriam dois formidáveis românticos, cada qual a seu jeito. Românticos principalmente neste ponto: no respeito pela pessoa humana, a ser defendida contra todos os seus inimigos. Sobre os dois - sobre Nabuco e sobre Euclides - atuaram nesse sentido influências inglesas que não devem ser esquecidas.
Aliás convém salientar que, atraído por afinidades de temperamento e, ao que parece, sob o domínio de tendências ou predileções comuns, o escocês Cunningham Graham traduziu para o inglês, no seu A Brazilian mystic, trechos inteiros d 'Os sertões, alguns dos quais, vertidos àquela língua por um romântico como Graham, nos dão a idéia de terem regressado à sua pátria. No caso, não tanto pátria intelectual, como, em certo sentido, moral, psíquica.
Além do que me parecem evidentes em Euclides da Cunha-o Euclides das cartas sobre a expedição a Canudos - traços de influência daquele tipo profundamente inglês ou escocês, não sei se diga de literatura - o "diário de militar". O diário do militar que cumpre liturgicamente o seu dever de soldado mas não renuncia à sua consciência de protestante inquieto a refugiar-se no "diário" como o católico no confessionário. Quando o protestante é escocês, à necessidade de confessar-se aos outros se junta aquele gosto de frase que um crítico nos diz, em estudo recente, ser o característico de "celta presbiteriano". Euclides, que se sentia não só "tapuia" e "grego" como "celta", talvez pudesse ter acrescentado "celta presbiteriano". Mas nenhuma influência estrangeira que se venha a precisar em Euclides, nenhuma coincidência de orientação, de temperamento, de técnica, de atitude mental ou de consciência que se venha a estabelecer entre ele e mestres europeus, antigos ou seus contemporâneos, afetará no grande escritor a originalidade essencial, feita do profundo brasileirismo e da força incisiva de personalidade que marcam tudo que ele fez e escreveu.
Alega-se, e com razão, que Euclides da Cunha, nos seus ensaios sobre a formação social do Brasil, concede importância exagerada ao problema étnico, parecendo não ter atinado com a extensão e a profundidade da influência da chamada "economia agrário-feudal" sobre a vida brasileira. Ou seja: despreza o sistema monocultor, latifundiário e escravocrata na análise da nossa patologia social; e exalta a importância do processo biológico - a mistura de raças - como fator, ora de valorização, ora de deterioração regional e nacional .
São recentíssimos, aliás, os estudos que vão estabelecendo o primado do fator cultural - inclusive o econômico - entre as influências sociais e de solo, de clima, de raça, de hereditariedade de família, que concorreram para a formação da sociedade brasileira, em geral e, particularmente, para as suas formas agrárias ou pastoris caracterizadas pelo latifúndio, pela exclusividade de produção e pelo trabalho escravo ou semi-escravo, com todos os seus concomitantes psicológicos de agricultura sem amor profundo à terra.
Não nos deve espantar que a Euclides da Cunha-a quem faltavam estudos rigorosamente especializados de antropologia física e cultural ainda mais que os de geologia, nos quais nos informou uma vez Arrojado Lisboa, a mim e a Rodrigo Melo Franco de Andrade, ter o autor d 'Os sertões recebido forte auxílio técnico de Orville Derby - impressionasse de modo particular o aspecto étnico, ou ostensivamente étnico, da geografia humana do Brasil. Nem que, nos seus ensaios resvalasse como resvalou, em mais de uma página eloqüente, no pessimismo dos que descrêem da capacidade dos povos de meio-sangue - ou de vários sangues - para se afirmarem em sociedades equilibradas e em organizações sólidas de economia, de governo e de caráter nacional. Descrença baseada em fatalismo de raça. Em determinismo biológico.
Não é de espantar, porque dos contemporâneos de Euclides da Cunha, o próprio Nina Rodrigues, com estudos especializados de antropologia (e cujo diagnóstico de psiquiatria do caso do Conselheiro, Euclides seguiu muito de perto), não escapou a exageros etnocêntricos na análise e na interpretação da nossa sociedade. Exageros que seriam seguidos por largos anos, quase sem retificação, por vários discípulos do sábio maranhense; e retomados pelo professor Oliveira Viana em obra erudita, publicada depois de 1920, quando no Museu Nacional já se esboçara, com Lacerda, a tendência, depois acentuada pelo professor Roquete Pinto, no sentido de reabilitar-se experimentalmente o mestiço brasileiro, vitima de preconceitos cientificistas com aparência de verdades antropológicas.
Tais preconceitos foram gerais no Brasil intelectual de 1900: envolveram às vezes o próprio Sílvio Romero, cuja vida de guerrilheiro de idéias está cheia de contradições. Só uma exceção se impõe de modo absoluto: a de Alberto Torres, o primeiro, entre nós, a citar o professor Franz Boas e suas pesquisas sobre raças transplantadas. Outra exceção: a de Manuel Bonfim, turvado, entretanto, nos seus vários estudos, por uma como mística indianista ou indianófila semelhante à de José de Vasconcelos, no México.
Daí não nos surpreender o pendor melancólico de Euclides para o fatalismo de raça. Aquele seu - "ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, repontam vivíssimos estigmas da inferior... de modo que o mestiço é, quase sempre, um desequilibrado... um decaído sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ascendentes superiores" (Os sertões, 3a ed., p. 109) é bem característico dos seus momentos de fatalismo étnico. Vê-se que Euclides da Cunha se viu às vezes arrastado pelo que considerava a antropologia científica na sua expressão única e definitiva, a acreditar na incapacidade do mestiço: incapacidade biológica, fatal.
Mas o certo é que não se extremou em místico de qualquer teoria de superioridade de raça. O perfil que traça do sertanejo não é de um devoto absoluto de tal superioridade. Nem é fácil de conceber que um homem como Euclides da Cunha, animado do culto da personalidade humana tanto quanto do entusiasmo pelos planos arrojados de socialização dos grupos regionais ou nacionais, pudesse ser hoje o etnocentrista desdobrado em totalitarista que entrevêem nele alguns críticos de belas-letras, para quem a caracterização psicológica dos indivíduos e dos povos é um jogo fácil, ao sabor de caprichos de momento ou de entusiasmos doutrinários de ocasião.
Em Euclides da Cunha, o pessimismo diante da miscigenação não foi absorvente. Não o afastou de todo da consideração e da análise daquelas poderosas influências sociais a cuja sombra se desenvolveram, no Brasil, condições e formas feudais de economia e de vida já mortas na Europa ocidental; traços aparentemente cacogênicos mas, na realidade, de patologia social, que o isolamento de populações, no sertão e mesmo nas proximidades do litoral, conservaria até os nossos dias. Aqueles fazendeiros de sertão que o escritor conheceu a usufruírem "parasitariamente as rendas das terras dilatadas, sem divisas fixas", eram bem o prolongamento, no espaço e no tempo, dos sesmeiros da colônia. Uns e outros, senhores de escravos ou de semi-escravos "perdidos nos arrastadores e mucambos". Semi-escravos, os dos sertões, "cuidando a vida inteira, fielmente, os rebanhos que lhes não pertencem". (Os sertões, 3a ed., p. 122.)
Aliás, é possível que o movimento messiânico de Antônio Conselheiro tenha tido alguma coisa da revolta de oprimidos, entrevista apenas por Euclides. Foi assim que Canudos ficou para a opinião européia mais aguçada no diagnóstico de revoluções exóticas: como revolta de classe oprimida. A resenha do Hachette, de Paris, para o ano de 1897, pode ser considerada típica daquele diagnóstico quando faz do Conselheiro - um dos raros sul-americanos que alcançaram então fama mundial - curiosa figura de profeta que pregava "le communisme en même temps que le rétablissement de la monarchie..."
O aspecto "comunista" e ao mesmo tempo "monarquista" encontra-se noutros movimentos brasileiros do século XIX, classificados vagamente como surtos de misticismo doentio entre grupos isolados: sertanejos do Nordeste, restos de quilombolas, "fanáticos" do Contestado, europeus mal assimilados pela civilização brasileira do litoral. Entre os últimos, os colonos alemães e os descendentes de alemães que, ainda sob a monarquia, esboçaram, perto de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, o seu Canudos ou a sua Pedra Bonita, o seu Quebra-Quilos ou a sua guerra de Cabanos, tendo por profeta uma mulher: Jacobina Mentz E por ideal de organização social, certo comunismo cristão a que talvez não fossem estranhos sugestões dos mórmons e restos de influência da tentativa de colonização socialista do dr. Mure, em Santa Catarina .
O próprio aspecto de sebastianismo político do movimento de Canudos - exagerado na época pelos devotos da República mas desprezado hoje pelos estudiosos daquele capítulo dramático de história brasileira - está a pedir a atenção de algum pesquisador mais pachorrento que se disponha a acompanhar - tarefa difícil - a atividade de agentes ou de simples amadores da restauração monárquica no nosso país, nos fins do século passado e nos começos do atual. Agentes ou amadores a quem a revolta do Conselheiro talvez tenha se apresentado como forca de fácil utilização política. Tais agentes e amadores não só existiram como atuaram, às vezes inteligentemente, a favor de sua causa. E sua atividade - se não francamente política, de sondagem pré-política das condições brasileiras e de colheita de dados para o que se pode hoje denominar de economia ou sociedade planificada dentro da concepção monárquica de reorganização da vida nacional (pois a tanto se estendeu o preparo para a restauração do Império no Brasil na pessoa do príncipe dom Luis, a quem não faltavam idéias moderníssimas de governo junto com o senso político, o gosto de ação e o entusiasmo pelas coisas brasileiras) - foi até ao interior do Brasil. Foi até ao estudo meticuloso e literalmente germânico de zonas remotas que somente agora estão interessando de novo aos responsáveis pela política e pela administração do nosso país. E foi até a tentativas francas ou sutis no sentido de atrair grandes intelectuais do Brasil para a causa monárquica. Tentativas que alcançaram Oliveira Lima - que chegou a ser convidado pelo príncipe para ministro das Relações Exteriores de um possível governo monárquico que da noite para o dia se estabelecesse no Rio de Janeiro - e se estenderam, de modo muito vago, ao próprio Euclides.
Admitido o aspecto vagamente político de Canudos - aquela mistura de "comunismo" com "monarquismo" - a verdade é que o movimento do Conselheiro foi principalmente um choque violento de culturas: a do litoral modernizado, urbanizado, europeizado, com a arcaica, pastoril e parada dos sertões. E esse sentido social e amplamente cultural do drama, Euclides percebeu-o lucidamente, embora os preconceitos cientificistas - principalmente o da raça - lhe tivessem perturbado a análise e a interpretação de alguns dos fatos da formação social do Brasil que seus olhos agudos souberam enxergar, ao procurarem as raízes de Canudos.
A mesma lucidez afastou-o da exagerada idealização da atividade missionária e política dos jesuítas - organizadores de outros Canudos - na formação brasileira. Idealização a que se entregaram com toda a alma Joaquim Nabuco e Eduardo Prado. A Euclides foi preciso ter havido o Anchieta - o mesmo Anchieta no qual os historiadores oficiais da expansão inaciana no Brasil colonial recusaram-se a enxergar a figura máxima daqueles dias, do ponto de vista jesuítico - para que ele, Euclides da Cunha, se sentisse reconciliado com a Companhia de Jesus. Mas não nos antecipemos sobre este ponto.
Além de Orville Derby - que segundo Arrojado Lisboa teria fornecido a Euclides da Cunha notas valiosas sobre a geologia do Brasil (assunto em que o sábio norte-americano naturalizado brasileiro era mestre)- o autor d 'Os sertões teve em Teodoro Sampaio não só um colaborador mas um orientador no estudo de campo de geografia e de história geográfica e colonial do Nordeste; e talvez - me aventuro a acrescentar - um tradutor de trechos mais difíceis da língua inglesa, em cujo conhecimento parece que Euclides da Cunha era patrioticamente fraco. No seu "Terra sem história" (À margem da história, 1908, p. 21) surpreendo-o a traduzir drinking, gambling and lying por "bebendo, dançando, sambando". Tradução demasiado livre.
Um critico baiano, o sr. Carlos Chiacchio, destacou há pouco, em sugestivo ensaio - Euclides da Cunha, aspectos singulares (Bahia, 1940) - o auxilio prestado ao escritor d 'Os sertões por aquele seu amigo e, em certo sentido, mestre de geografia e de história - tanto quanto Orville Derby de geologia: Teodoro Sampaio. O próprio Sampaio recordara, em artigo para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (Bahia, 1919, p. 252): "Levou-me [Euclides] algumas notas que eu lhe ofereci sobre as terras do sertão que eu viajara antes dele em 1878. Pediu-me cópia de um meu mapa ainda inédito na parte referente a Canudos e vale superior do Vaza-Barris, trecho do sertão ainda muito desconhecido, e eu lho forneci. . . " E para Sampaio é que Euclides da Cunha foi lendo depois, aos domingos, "os primeiros capítulos, os referentes à natureza física dos sertões, geologia, aspecto, relevo", escritos "naquela sua caligrafia minúscula". Poupou, talvez, ao mestre de geografia a leitura das páginas mais acres de pessimismo sobre os povos híbridos. Pedira ainda Euclides a Teodoro Sampaio "apontamentos históricos", que - diz Sampaio naquele seu artigo - "eu assim como os possuía, enfeixados em cadernos de notas, de bom grado lhos fornecia, resultando disso, por acaso, esse manuscrito da lavra de nós ambos que o instituto hoje possui, isto é, notas distribuídas em capítulos por mim escritos na primeira parte do livro, observações outras da lavra de Euclides, feitas com a mesma letra miudinha que ambos adotávamos para simples anotações". Das notas de Teodoro informa o sr. Carlos Chiacchio que se referem a "cartas régias, roteiros, alvarás, crônicas de jesuítas, biografias, manuscritos coloniais, múltiplos veeiros, em suma, codificados em Casal, Accioly, Pedro Taques, Araújo Porto Alegre, Alexandre Rodrigues Ferreira, pesquisas e documentos de institutos, bibliotecas, arquivos de Rio e Bahia, tudo isso esmerilhado, escoldrinhado, loteado e recolhido não em um ou dois ou três anos de afogadilho mas longamente, metodicamente, pertinacissimamente".
Juntando-se a colaboração do paciente pesquisador de geografia física e humana e de história colonial do Brasil que foi Teodoro Sampaio à do geólogo Orville Derby e, ainda, à orientação do psiquiatra Nina Rodrigues quanto ao diagnóstico do Conselheiro e dos fanáticos de Canudos o próprio esforço de pesquisa de Euclides nos arquivos da Bahia, e, de campo, no interior do estado, vê-se como é precária a posição dos que ingenuamente exaltam n'Os sertões um livro improvisado. Nem improvisado nem fácil. Nem tampouco caprichosamente individual, de quem tivesse se retraído dos especialistas seus amigos ou conhecidos para escrever sozinho um livro de tamanha complexidade.
Nas suas pesquisas de técnico, no extremo Norte, Euclides da Cunha teve outro bom colaborador, este seu primo e, como Teodoro, amigo íntimo: o engenheiro Arnaldo Pimenta da Cunha.
Do então jovem engenheiro Pimenta da Cunha é que escreveu a José Rodrigues Pimenta da Cunha - pai de Arnaldo e tio de Euclides - o médico da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus: "A parte técnica da comissão foi muito principalmente obra sua. Foi talvez o anjo tutelar do chefe. . . " De modo que colaborações técnicas de amigos não faltaram ao grande escritor.
É de Euclides esta caracterização de sua própria vida: "romance mal arranjado". Nesse "romance mal arranjado" um dos seus maiores consolos foi decerto o da amizade. Amizade que mais de uma vez se estendeu em colaboração ou em auxílio técnico dos amigos - dos mais jovens como dos mais velhos - nas pesquisas e nos trabalhos necessários a ensaios de modo nenhum improvisados. Raro o escritor, o artista ou o cientista que tenha tido amigos e colaboradores tão bons como os que Euclides da Cunha teve na Bahia e no Amazonas, em São Paulo e no Rio.
Nas suas viagens de aventura científica, à saudade dos filhos se juntou sempre a dos amigos: "as imagens dos amigos constantemente evocadas e cada vez mais impressionadoras à medida que se aumentam as distancias". E aos amigos - diz numa carta a Oliveira Lima - aos amigos "elejo-os sempre incorruptíveis confessores desta minha vida". A Vicente de Carvalho escreve meses antes de ser assassinado no Rio: "Tranqüiliza-me, homem! Imagina as atrapalhações em que vivo...."
O crítico baiano Carlos Chiacchio me parece acertar na interpretação da angústia de Euclides da Cunha, já fixada pelo sr. Elói Pontes, num livro que é um esforço admirável de reconstituição da personalidade do autor d 'Os sertões: a falta de um amor. Angústia atenuada pela constância dos amigos e pelos encantos da aventura científica nos ermos: "o meu deserto, o meu deserto bravio e salvador.... o sertão.... e a vida afanosa e triste de pioneiro". E não a "Europa, o bulevar, os brilhos de uma posição". O que não o impediu de ter pensado muito na Europa - que teria sido para ele outra espécie de ermo. Nem de se apresentar candidato à Academia Brasileira de Letras.
Sente-se, na sua correspondência, que Euclides da Cunha procurou em vão a imagem que prolongasse na sua vida de adulto triste a da mãe morta quando ele tinha apenas três anos; e idealizada pelo órfão numa espécie de Nossa Senhora das suas dores de menino, das suas esperanças de adolescente, dos seus sonhos de adulto mal definido. Cuidou encontrar a imagem ideal na "República" - para ele e para o seu quixotismo quase pessoa, quase mulher, quase Dulcinéia: tanto que a confundiu com a figura de moça que mais o impressionou na mocidade. Mas a confusão durou pouco. A identificação do símbolo com uma figura particular de mulher não foi além do seu desejo. Nem era possível que esse sonho de homem romântico e talvez neurótico tivesse inteira realização.
Daí o narcisismo confundido com o apego à figura ideal de mulher que parece o ter acompanhado sempre: até em visões sob a forma de um "vulto branco de mulher" (Coelho Neto), de uma "dama branca" (Firmo Dutra), de uma mulher "de asas abertas, ora descerrando reposteiro escuro e pesado, em salão de luxo, vestida de túnica, ora envolvida em levíssimas vestes, toda de alvo, igualmente com asas, munida de trombeta e já agora numa espécie de bosque" (A. Pimenta da Cunha). Narcisismo, o seu, deformador de sua visão da natureza e dos homens dos sertões. Deformador, porém, no sentido de acentuar a realidade congenial. No sentido de estilizá-la. Deformador no sentido profundamente realista da arte só na aparência violentamente mórbida de El Greco.
Como tantos brasileiros do tempo do Império - o próprio imperador, talvez - e dos seus dias de homem feito - parece que o próprio Rio Branco - Euclides da Cunha foi um indivíduo que nunca se completou em adulto feliz ou em personalidade madura e integral, a quem a colaboração doce e inteligente, ou simplesmente a inspiração constante de uma mulher, tivesse acrescentado zonas de sensibilidade, de compreensão e de simpatia humana, que o homem sozinho não percorre senão angustiado; ou não percorre nunca.
É possível que do incompleto de sua vida tenha resultado o enriquecimento de sua obra e da nossa literatura, pela exploração e intensificação de zonas particularíssimas de sensibilidade e de compreensão da natureza e do homem tropical. Afinal, não é uma frase de efeito a que atribui à angústia, ou ao desajustamento do indivíduo ao meio, um singular poder criador. Aos homens de gênio como Robert Browning - que completado pela sua querida Ba foi o equilíbrio, a saúde, a alegria, a sociabilidade, a felicidade em pessoa - se opõem, mesmo fora do Brasil terrivelmente monossexual na sua formação, exemplos de indivíduos que produziram grandes obras à sombra de angústias enormes a eles impostas pela falta ou pelos erros de amor. Nos seus desajustamentos, como que se desenvolveram condições favoráveis à produção de obras intensas de arte, de ciência e de pensamento. Mas esses exemplos não nos devem fazer esquecer os daqueles que completos, integrais e felizes é que produziram grandes obras: obras de valor permanente e de significação universal. Esses são os grandes homens completos.
Euclides quase nada teve desses homens completos, bem equilibrados e saudáveis, de que Nabuco foi, no Brasil, uma expressão magnífica. O autor d'Os sertões foi um homem com uma grande dor, nem sempre disfarçada nas cartas aos amigos nem nos livros que escreveu. Retraído e calado, era um indivíduo triste para quem a vida tinha poucos encantos; a quem o mundo oferecia raras alegrias. Natural, portanto, que não gostasse de Nabuco: o Nabuco bonito, elegante, mundano, afrancesado, idéias e roupas à inglesa, que lhe parecia artificial tanto que numa de suas conversas com Oliveira Lima - dom Quixote gordo, com quem seu quixotismo de magro tinha tantas e tão profundas afinidades - comparou o autor de Minha formação a um "ator velho". Pelo menos a voz: voz de ator velho. Por sua vez Nabuco achava que Euclides como que escrevia com um cipó.
O brasileirismo intensamente concentrado, retorcido e agreste de Euclides da Cunha se apresenta melancolicamente incompleto em suas expansões e em suas afirmações. Ele foi o "celta", o brasileiro, o baiano raro que não riu: ou riu tão raramente que nunca o imaginamos rindo nem mesmo sorrindo. Ao contrário do brasileiro típico - isto é, o típico em cuja composição entrasse a quase totalidade dos subtipos regionais - não foi nenhum "homem cordial", de riso fácil e gestos camaradescos; nem nenhum guloso de mulheres bonitas ou simplesmente de mulheres, do gênero que se extremou em Maciel Monteiro e se vulgarizou em Pedro I, a quem as próprias molecas interessavam. Nem mesmo um simples guloso de doces, de bons-bocados, de quitutes feitos em casa. Varnhagen cozinheiro e Rio Branco regalão, curvados em mangas de camisa sobre alguma peixada à brasileira, devem lhe ter parecido ridículos. Varnhagen quituteiro - ridículo e até desprezível para a sua masculinidade convencional de he-man e para a sua temperança de caboclo ou "tapuio".
Teodoro Sampaio contou-me urna vez - por sinal que à sobremesa de um excelente jantar de peixe de coco em casa de Aníbal Fernandes, organizado e presidido pela artista ilustre do tempero e não apenas da pintura que é dona Fedora - que Euclides da Cunha era a tortura das donas-de-casa. Traço da personalidade do grande escritor que aquele seu mestre e amigo baiano já registrara em artigo na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (p. 253): "À mesa o Euclides era um torturado a quem as iguarias faziam mais medo do que as carabinas da jagunçada revolta. Comer fosse o que fosse era-lhe um tormento, por mais inocente que lhe parecesse a iguaria e isso notei-lhe sempre, antes como depois de sua visita a Canudos." E ainda: "Não tinha prazer à mesa, onde se assentava, de ordinário, conviva taciturno e desconfiado e neste estado de espírito tudo lhe servia de escusa aos obséquios e oferecimentos. - Que é que se há de oferecer a Euclides? Era a pergunta da dona da casa toda vez que se aguardava a visita do autor d'Os sertões. E o Euclides, a bem dizer, só se considerava tranqüilo à mesa, quando nada via de especial a se lhe oferecer."
Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem almoços à baiana, com vatapá, caruru, efó, nem feijoadas à pernambucana, nem vinho, nem aguardente, nem cerveja, nem tutu de feijão à paulista ou à mineira, nem sobremesas finas segundo velhas receitas de iaiás de sobrados, nem churrascos, nem mangas de Itaparica, abacaxis de Goiana, açaí, sopa de tartaruga, nem modinhas ao violão, nem pescarias de Semana Santa, nem ceias de siri com pirão, nem galos de briga, nem canários do Império, nem caçadas de onça ou de anta nas matas das fazendas, nem banhos nas quedas-d'água dos rios de engenho - em nenhuma dessas alegrias caracteristicamente brasileiras Euclides da Cunha se fixou. Nem mesmo no gosto de conversar e de cavaquear às esquinas ou à porta das lojas - tão dos brasileiros: desde a rua do Ouvidor à menor botica do centro de Goiás. Principalmente dos baianos - dos quais Euclides procedia, embora sua personalidade se enquadre menos no tipo regional do baiano do Recôncavo que no do sertanejo. "Raro na palestra se animava" - é a informação que nos dá, a esse respeito, Teodoro Sampaio, que acrescenta: "Não era verboso, nem álacre, nem causticante no discretear ordinário. Preferia pensar, refletir, ouvir antes que dizer, o que traía natural propensão mais para colher do que para dispartir as jóias do seu espírito."
Aqui se impõe um esclarecimento: causticante, Euclides da Cunha o era, e muito; parente, na mordacidade, daquele outro caboclo retraído mas bisbilhoteiro a seu jeito de songamonga, Capistrano de Abreu, do qual já se disse que se todas as suas cartas fossem publicadas dissolvia-se a Sociedade Capistrano de Abreu, Euclides foi às vezes terrível nessa outra forma de "discretear ordinário" que é a carta, a conversa, o gossip com o amigo distante, a correspondência. Que sirvam de amostra alguns trechos de cartas suas a Gastão da Cunha, conservadas no arquivo do diplomata mineiro, do qual Rodrigo M. F. de Andrade, em transcrições publicadas em 1926, n'O jornal, nos deixou entrever a natureza vulcânica. Esse pendor para o comentário vivo, às vezes agreste e até cruel às figuras do dia, não se manifesta sempre na correspondência de Euclides, da qual Venâncio Filho publicou recentemente, em livro, trechos interessantes. É nas cartas mais íntimas a amigos também causticantes - como Oliveira Lima e o já referido Gastão da Cunha - que o pendor de Euclides para aquela espécie de comentário ou de cavaco mais cru melhor se revela.
Como todo estudioso da formação brasileira, Euclides da Cunha teve de defrontar-se com a figura do missionário jesuíta e com a vasta obra de arquitetura social da Companhia de Jesus na América. Saliências da nossa história de uma sedução particular para quem tinha, como Euclides, a obsessão quase bizantina do escultural e, em arquitetura - material ou moral - o gosto dos arrojos verticais. E nesses arrojos o missionário jesuíta na América portuguesa excedeu ao colonizador. Quer nos seus planos, em parte realizados, de construção intelectual de elites e de segregação de indígenas dispersos, quer no sentido concretamente arquitetônico de edificações de pedra e cal, logo que lhes foi possível o emprego de material nobre no levantamento de igrejas e colégios.
No colonizador português o sentido de construção quase sempre se contentou com o "terrivelmente chato" da arquitetura "feia mas forte" das casas-grandes do interior e dos sobrados do litoral. Sentido que se exprimiu no horizontal monótono mas sólido que caracteriza as linhas da nossa chamada arquitetura colonial de preferência ao vertical dos palácios de Lima e das catedrais da América espanhola.
Não foi, entretanto, por influência dessas suas predisposições acentuadas para a admiração dos arrojos verticais de construção - quer no sentido real, quer no figurado - que Euclides se deixou "reconciliar" com a Companhia de Jesus, cuja história européia, lida talvez superficialmente, tanto lhe repugnara. E aqui nos surpreende o paradoxo que marca o humanismo do escritor a prevalecer sobre o seu verticalismo de geômetra: a "reconciliação" se operou através da figura lírica de Anchieta - o menos típico daqueles jesuítas dramáticos que enchem a história do Brasil de uma gravidade mais castelhana do que portuguesa. O menos dramático e o mais lírico. Foi entretanto o suficiente para que Euclides da Cunha descobrisse na Companhia de Jesus na América a negação maciça de sua ação na Europa, para ele repugnante nos aspectos políticos:

"Incoerente e sombria, pregando, no século XVI, exageradamente, através da justificação singular da estranha teoria do regicídio de Mariana, a soberania do povo, e combatendo, aliada aos tronos, essa mesma soberania quando surgia triunfante no século XVIII; precipitando ora os reis sobre os povos, ora os povos sobre os reis; traçando, através da agitação de três longos séculos atumultuados, os meandros de espantosas intrigas - ela foi, na América, coerente na missão civilizadora e pacífica, seguindo a trajetória retilínea do bem, heróica e resignada, difundindo nas almas virgens dos selvagens os grandes ensinamentos do Evangelho." ("Anchieta", em Contrastes e confrontos, 3a ed., p. 128.)
O trecho é bem característico de Euclides da Cunha orador: passa de repente do tom quase maçônico de inimigo da companhia ao de panegirista da obra do jesuíta na América. Mas mesmo assim - repito - a generalização enfática nos deixa ver um Euclides superior, neste particular, em lucidez crítica, àqueles dois ensaístas seus contemporâneos - Joaquim Nabuco e Eduardo Prado - ainda mais que o autor d'Os sertões turvados, em algumas de suas páginas mais famosas de evocação do passado brasileiro, pela exaltação sentimental do missionário da S. J. ou pelo ardor apologético de entusiastas da companhia.
Há evidentemente nas páginas comovidas de Euclides sobre Anchieta o desejo de "fixar em bronze" - sempre o artista a querer pôr a estatuária simplificadora a serviço das complexidades da história ou da biografia - a figura enternecedoramente lírica do padre mestiço, que o escritor d'Os sertões - contra interpretações mais autorizadas e melhor documentadas - considerou típica dos ideais e da ação missionária dos inacianos no Brasil. E bem pouco do animo ou do espírito tranqüilamente crítico diante daqueles ideais e daquela ação em suas relações com o desenvolvimento do Brasil em nação mestiça e em cultura plural. Ânimo ou espírito de que se encontram melhores evidências noutros trabalhos do autor de A margem da história.
Não se compreenderia, aliás, dentro da crítica psicológica dos processos de acomodação de antagonismos sociais e de cultura (crítica que se mostra tão útil em completar a simplesmente histórica dos atos humanos), exceção tão considerável como a que Euclides sugere para a ação da companhia na América. Sociedade diversa na sua técnica de catequese e de política - uma na Europa, outra no Oriente, ainda outra na América - a Companhia de Jesus foi, e é ainda, por toda a parte, a mesma nos seus fins corajosamente militantes e agudamente combativos a favor de uma ortodoxia católica definida quase sempre a seu jeito pelos seus próprios e vigorosos teólogos; sempre a mesma, também, nos seus esforços de absorção de prestígio dentro e fora da Igreja. Esforços que no Brasil, como noutros países da América, levaram a companhia a conflitos com os governos, com o próprio rei, com os bispos, com as outras religiões ou ordens. E as "missões" ou "reduções", cuja sombra de obra monumental ainda hoje se projeta sobre a paisagem e a cultura do extremo Sul do Brasil, dificilmente podem ser apresentadas como exemplo de técnica persuasiva de evangelização e de método de assimilação lenta de uma cultura por outra.
Ao contrário: nelas se antecipou, do ponto de vista de pura experimentação sociológica de formas, a técnica moderna de sujeição por todos os meios - inclusive a reeducação da gente grande através das crianças - de grandes massas humanas a determinados modos de vida e a estilos improvisados de associação e de arte considerada social; de rápida arregimentação das massas em grupos operosos de artífices. Artífices quase sem tradições de grupo, por um lado, e sem espontaneidade individual na sua expressão artística e religiosa, por outro: a pessoa de cada um sacrificada ao interesse considerado geral; e esse interesse imposto quotidianamente ao todo pelos executores da ortodoxia sociológica desdobrada da teológica.
A "história dolorosa das reduções jesuíticas" a que se refere Euclides - tomando vicariamente por um instante as dores do indígena do qual ficou até hoje o grito romântico: "me mata mas não me reduz" - é, ainda, um capítulo a escrever na história antropológica dos primeiros contatos dos europeus com os ameríndios; e também um capítulo na história das grandes experiências sociológicas não só de economia como de cultura dirigida. E quando esse difícil capítulo da história da cristianização da América e da socialização do mundo moderno for escrito, é possível que se confirme a sugestão esboçada aqui: nas "reduções", os jesuítas se anteciparam em métodos de arregimentação de massas, empregados na civilização rápida de povos chamados naturais - métodos verdadeiramente admiráveis, na sua pureza técnica, como esforços de ordenação externa e até certo ponto interna da vida - a modernos experimentadores da Europa.
A atualidade da técnica dos jesuítas das "reduções" é vivíssima: na América eles tentaram há três séculos, com povos primitivos, o que agora se tenta na Europa com povos de cultura avançada. É certo que para Euclides da Cunha o resultado da obra jesuítica das "missões" ou "reduções" foi "matar", pelo menos, um povo: o paraguaio (À margem da história, p. 342). Conclusão que me parece tão exagerada quanto, no sentido contrário, aquela outra já citada: de que na América os jesuítas só fizeram seguir "a trajetória retilínea do bem", tendo sido todos uns Anchietas cândidos e seráficos.
Na história das grandes experiências sociais no sentido da planificação maciça da vida humana, os padres da companhia - repita-se - têm lugar de relevo entre os pioneiros, pela obra realizada na América com um vigor que muitas vezes contrariou o desenvolvimento do Brasil na nação mestiça e na cultura plural e democrática que é hoje: mas que foi, entretanto, obra monumental; e não só de destruição como de ordenação de vida. Mostraram aqueles padres - talvez mais "mágicos" do que "lógicos" - três séculos antes de Pareto, de Sorel, de Marx, o que se pode conseguir pela violência inteligentemente empregada e pela utilização de novos mitos, no sentido da despersonalização de homens e da sua socialização rápida. Uma experiência de enorme interesse para as ciências sociais. Pede um estudo à parte.
Vários críticos modernos, especializados no trato mais jornalístico do que científico de assuntos sociológicos e políticos, ao comentarem organizações atuais da Europa, não hesitam em filiá-las, talvez com precipitação, à tradição do método jesuítico de ação dissimulada e sinuosa, mas penetrante e eficaz (tradição limitada arbitrariamente por Euclides da Cunha à história européia da companhia): tal o caso de Elizabeth Wiskemann, em recente artigo no The spectator, de Londres (12 de janeiro de 1940), intitulado "The Jesuits to-day". E o professor Harold Laski, cujo nome reúne à responsabilidade de escritor a de mestre respeitado, em universidades inglesas e americanas, de direito público, no livro Communism (Home University Library, 1927), compara os comunistas russos, no seu uso alternado de persuasão e de força externa, com os jesuítas. Com os jesuítas na Espanha e com os jesuítas na América do Sul.
A verdade é que os S. J. na América do Sul não foram todos os homens cândidos da generalização de Euclides da Cunha, mas, vários deles, astutos e sutis; e alguns duros e até violentos. Dificilmente se imagina um Antônio Vieira - intrigante como ele só e tipo por excelência do "diplomata secreto", tantas vezes às voltas com hereges e em confabulações quase idílicas com judeus ricos de que o historiador João Lúcio de Azevedo pode surpreender traços interessantíssimos - dentro da classificação de "cândido misticismo". Nem era tão cândido o próprio Anchieta que desconhecesse a necessidade realisticamente pedagógica de empregar no trato com os índios do Brasil e na sua educação a palmatória ou a vara.
A ação da Companhia de Jesus na América colonial - e dizemos na América porque ela primou em ser transnacional, na América do Sul identificando-se de preferência, mas sempre de acordo com suas necessidades e aspirações, com o interesse espanhol, contrariando mais de uma vez o dos portugueses - é fenômeno diante do qual o estudioso ou o observador encontra hoje imensa dificuldade em conservar-se calma e objetivamente crítico. Nada mais ridículo nem mais irritantemente vulgar que a atitude dos que, em face da capacidade revelada pelo jesuíta, na América como na Europa e no Oriente, para levantar obras verdadeiramente monumentais, se fecham maçonicamente a toda admiração que o esforço extraordinário dos padres da companhia desperta. Mas no Brasil o extremo oposto é que tem prevalecido; de modo que o menor esboço de crítica à ação jesuítica entre nós - crítica histórica completada pela crítica psicológica - ou a menor tentativa de interpretação sociológica daquele esforço, ainda que simpática à companhia e até impregnada de admiração pelos seus grandes missionários, toma o ar de um ataque ou de uma oposição sistemática à S.J.
De Euclides da Cunha não se pode dizer que, no seu artigo cheio de ternura por Anchieta, nos tenha deixado um esboço sequer de interpretação crítica da Companhia de Jesus nas suas relações com o Brasil, com o ameríndio, com o mestiço, com o africano. Nada que se aproxime da análise iniciada por Gonçalves Dias, o indianista de quem o exagero indianófilo fez um agudo observador da ação jesuítica na América lusitana, sensível aos aspectos - geralmente esquecidos - da opressão do índio em algumas das "missões" e de sua artificialização em cristãos in vácuo.
Análise esboçada na obra em que o poeta maranhense revelou cultura científica ao lado de uns começos de humanismo sociológico e de um brasileirismo amplamente cultural - e não apenas político ou estreitamente cívico - surpreendentes para a época. Dentro de semelhante orientação, teria de encontrar, como de fato encontrou, aspectos da obra jesuítica em conflito com os interesses autenticamente brasileiros de organização social democrática e de cultura pluralista.
É pena que justamente o manuscrito do estudo especializado de Gonçalves Dias sobre os jesuítas no Brasil tenha desaparecido. Mas o que nos deixou a respeito daqueles missionários e de suas relações com os indígenas é fortemente sugestivo. O maranhense se antecedeu a Euclides na fixação de pontos de partida importantes para o estudo do pluralismo cultural brasileiro, cujo inicio o jesuíta, com seus planos de segregação de uma raça inteira para seu aperfeiçoamento em devotos da companhia, contrariou poderosamente, ainda que sob a influência de boas e piedosas intenções evangélicas.
Logicamente é quem devia ter continuado o trabalho de Gonçalves Dias, sobre as relações dos missionários com os indígenas: Euclides da Cunha. O trabalho de Gonçalves Dias e o de Couto de Magalhães. Não o continuou. Deixou-nos, apenas, sobre o assunto, alguns reparos críticos de rara lucidez, entre generalizações perigosamente enfáticas. Não digo reparos de absoluta objetividade porque Euclides da Cunha tinha o seu ponto de vista: o da formação brasileira. E o ponto de vista é, num estudioso de assunto histórico - social, aquele "aspecto subjetivo" da definição de Farris da personalidade com relação à cultura.
A história da Companhia de Jesus no Brasil não se fará nunca, sem que à obra de um padre Serafim Leite - notável pela abundância de sua documentação, reunida, selecionada e interpretada do ponto de vista jesuítico - corresponda o alongamento e o aprofundamento dos estudos de Gonçalves Dias, Couto de Magalhães e João Lúcio de Azevedo. Entre esses estudos, as páginas de Euclides ligadas ao assunto vivem pela intensidade do "são brasileirismo" que as anima. "São brasileirismo" creio que para o criador da expressão - Sílvio Romero - terá incluído "espírito crítico"; e este nem nas páginas mais subjetivas, pessoais e nacionalistas do autor d 'Os sertões, desaparece de todo. É o que explica o fato do enternecimento pela figura de Anchieta não ter feito dele o louvador sem discriminação nem reserva do jesuíta na América que foi Eduardo Prado.
Aliás, a própria atitude dos que hoje se aproximam do assunto do ponto de vista jesuítico mas com espírito crítico e, tanto quanto possível, científico - o caso do erudito autêntico que é o padre Serafim Leite - já se vai tornando, em Portugal e no Brasil, aquela atitude de discriminação característica de toda análise de história social orientada cientificamente. Digo em Portugal e no Brasil, porque noutros países semelhante atitude já não é novidade nenhuma entre os padres que se ocupam com seriedade de assuntos históricos; e em 1933 um ilustre jesuíta, o padre H. Heras, estudioso da história da companhia na Índia, pôde escrever, em resposta a críticas do historiador Bóies Penrose aos métodos de conversão empregados pelos S. J. no Oriente - críticas que constam da introdução escrita por Penrose a documentos do século XVII reunidos no livro Sea fights in the East Indies in the years 1602-1639 (Harvard University Press, 1931) - palavras que aqui soariam escandalosas: "O autor é ele próprio jesuíta, mas o primeiro a reconhecer os defeitos dos seus confrades, desde que bem sabe que embora todos eles se esforcem para adquirir santidade, nem todos são santos, e conseqüentemente podem errar e têm efetivamente errado em muitas ocasiões." Palavras que no original inglês se encontram à página 2 da introdução do padre Heras ao seu ensaio The conversion policy of the Jesuits in Índia (Bombaim, 1933). Fixam uma atitude que é hoje, entre nós, brasileiros e portugueses, a do padre Serafim Leite; mas ele quase sozinho entre os jesuítas brasileiros, portugueses e indianos; e, principalmente, entre os seus apologistas leigos menos letrados, constituídos numa espécie de seita que um malicioso já chamou de afro-brasileira, tal o seu simplismo intelectual. São extremistas que pretendem fazer do passado da companhia na América história sagrada, da qual só se possa e se deva dizer bem.
Euclides da Cunha, pelos seus reparos à ação dos jesuítas, não só na Europa como na América, é dos que os expoentes de semelhante extremismo - se lhe conhecessem bem a obra - colocariam entre os "inimigos da Igreja" e até do Cristo. Não porque faltasse a Euclides admiração pelo esforço dos jesuítas; mas porque essa admiração não foi absoluta. Quando a verdade parece ser que Cristo teria aprovado antes a política de contemporização com as culturas indígenas dos portugueses na América e dos próprios jesuítas no Oriente - política de que resultou, no continente americano, o Brasil vasto, pluralista e democrático de hoje - do que a de segregação, dos mesmos jesuítas - no Paraguai, nos Sete Povos e no Grão Pará - e da qual, evidentemente, não teria resultado o Brasil nosso conhecido . Quando muito alguns Brasis isolados, uns inimigos dos outros. Aqui entra o subjetivismo brasileirista na interpretação da história da companhia e da história do Brasil. Desse subjetivismo a obra de Euclides está impregnada.
Dentro desse subjetivismo de brasileiro, mas, ao mesmo tempo, com objetividade na análise particular de assuntos sociais, é que Euclides da Cunha dedicou tão grande atenção ao problema da terra e do homem do Brasil. Ora temendo a incapacidade do mestiço para progredir dentro dos padrões de progresso da nossa época e num meio físico como o do Brasil tropical - meio quase tão hostil ao mestiço e ao próprio indígena quanto ao branco pela "copiosa exuberância de vida vegetal".... "favorecida por um ambiente impróprio à existência humana"; ora otimista e desanuviado de "temores vãos", proclamando as virtudes - até contra possíveis tentativas de ocupação militar do país - dos "destemerosos sertanejos dos estados do Norte, que há vinte anos estão transfigurando a Amazônia" ("Contra os caucheiros", Contrastes e confrontos, p. 233) e apontando ao Brasil a necessidade da "redenção maravilhosa dos territórios", pelo emprego, por nós próprios e numa obra que se poderia chamar hoje de autocolonização, das técnicas desenvolvidas nos trópicos pelos povos imperialistas em "milagres" - a expressão é de Euclides - "da engenharia e da biologia industrial". ("Plano de uma cruzada", Contrastes e confrontos, p . 177)
Poderia ter acrescentado - da higiene, da administração, da saúde pública, da medicina social. Que tudo isso pode e deve ser mobilizado a favor da redenção dos territórios e dos povos considerados inferiores de modo absoluto quando sua inferioridade é afinal relativa. Redenção, no caso dos nossos territórios e das nossas populações indígenas e mestiças mais desprezadas, não só de largo sentido humano, cultural e social, mas brasileiro.
Este último sentido nunca faltou ao engenheiro social animado de ideal político que foi Euclides da Cunha. Para ele, a assistência àquelas populações e a redenção daqueles territórios não eram obras inspiradas numa vaga piedade humana, por um lado, nem numa mística de progresso material ou de tecnicismo puro, por outro. Quando se refere, por exemplo, à região entre o Madeira e o Javari como "remotíssimo trecho da Amazônia onde não vingou entrar o devotamento dos carmelitas" nem o que chama "a absorvente atividade meio evangelizadora, meio comercial dos jesuítas" ("Entre o Madeira e o Javari", Contrastes e confrontos, p. 234), trecho de território brasileiro agitado depois - nos últimos trinta anos do século XIX - por "vertiginoso progresso", é para salientar a necessidade da engenharia e da técnica serem utilizadas a favor da unidade brasileira, não deixando o Brasil zonas como aquela, remotas mas progressistas, isoladas do resto do país: acabariam destacando-se de nós. A preocupação brasileira. O ponto de vista brasileiro. O sentido brasileiro dos problemas de geografia e de sociologia. A mística da unidade brasileira a inundá-lo de uma ternura especial pelo indígena, pelo caboclo, pelo nativo, pelo Amazonas, pelo Acre, pelo Ceará, por Anchieta, por Diogo Antônio Feijó, por Floriano Peixoto, pela viação férrea, pelo telégrafo, pelo barão do Rio Branco. Brasileirismo que foi o principal "aspecto subjetivo" da obra de Euclides da Cunha: a marca mais forte de sua personalidade em relação com a cultura científica e técnica do seu tempo e com a academicamente humanista e aristotélica ou platônica do passado, pelo qual se alongou sua análise de estudioso de problemas sociais.
O seu socialismo não o desprendeu do Brasil. Não foi nunca, é certo, um nacionalista estreito. Mas não seguiu o conselho daquele espanhol, adepto do amor livre, que recomendava às novas gerações a adoção dessa e de outras liberdades mais ou menos sedutoras: mas pelas filhas dos outros; não pelas suas. Atitude muito de certos teóricos do socialismo, por um lado, e do cientificismo, sociológico e histórico, por outro: recomendam a objetividade absoluta aos outros - principalmente aos literatos dos países pequenos. Eles, porém, conservam-se terrivelmente subjetivistas com relação às suas poderosas pátrias ou semipátrias; ou aos seus sistemas ideológicos ou semi-ideológicos.
2. Revelador da realidade brasileira
De Euclides da Cunha se pode hoje afirmar que é um dos escritores brasileiros que maior influência vêm exercendo sobre a gente do seu país e maior atenção da parte de estrangeiros vêm atraindo para a cultura, em geral, e para as letras, em particular, de um ainda obscuro Brasil. Dois seriam hoje seus rivais, mais nessa espécie de influência do que nesse poder de sedução sobre estrangeiros: José de Alencar e Machado de Assis. Ambos menos carismáticos que o autor d'Os sertões. O que é certo também dos poetas nacionais que até hoje têm alcançado maior irradiação dentro e fora do Brasil: nenhum deles parece igualar o estranho ensaísta em carisma ou o exceder em influência.
É difícil de explicar a constância dessa influência de Euclides. Difícil de explicar a irradiação do carisma ou do quase-carisma que vem assinalando a presença de Euclides da Cunha tanto na vida como nas letras do nosso país. Pois se há escritor brasileiro de quem se possa dizer que é carismático, esse escritor é o autor d'Os sertões: artista difícil, como nenhum, de ser separado da sua condição de homem e da sua especialidade de técnico. Seu perfil anguloso de homem terrivelmente magro emerge há anos das ilustrações dos compêndios de literatura brasileira com alguma coisa de ascético e de profético a acentuar-lhe o prestígio e a marcar-lhe a sedução que suas letras e o drama da sua vida e a tragédia da sua morte vêm exercendo sobre a imaginação de já mais de duas gerações de brasileiros; e, ultimamente, até sobre estrangeiros voltados para literaturas exóticas do sabor ainda indefinido da brasileira.
Entretanto, é escritor difícil, este: ouriçado de adjetivos que antes o afastam que o aproximam do leitor moderno. Difícil e arrevesado. Discípulo, a seu modo, do Gracián que foi o ibero até hoje de maior influência sobre os pensadores germânicos, chega às vezes a um preciosismo que quase se confunde com o dos escritores além de cientificistas, pedantes: de um cientificismo pedante e irritante.
A verdade é que Euclides da Cunha escreveu perigosamente. Transpôs para a arte de escrever o viver perigosamente de que falava Nietzsche. Escreveu num estilo não só barroco - esplendidamente barroco - como perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos: deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos mortais, de extremos de má eloqüência que o teriam levado à desgraça literária ou ao fracasso artístico. Que o teriam tornado outro Coelho Neto.
É um escritor cujo gosto, sem ser o convencionalmente bom, dos clássicos medidos e claros, nos dá a idéia de estar sempre em perigo: o perigo de tornar-se absolutamente mau. Mau segundo todos os padrões: os clássicos e os anticlássicos. Apenas esse risco nunca se realiza de todo. Nunca passa inteiramente de risco à desgraça literária. O autor d 'Os sertões nunca chega a ser catastrófico em seus colapsos de má eloqüência. Euclides da Cunha não nos desaponta em momento algum com uma só expressão de inconfundível mau gosto; ou de indiscutível preciosismo; ou de absoluto gongorismo. O que nele é freqüente é o gosto duvidoso, ambíguo e, por conseguinte, discutível.
Talvez por aí se explique a sedução ou o encanto com que ele vem há mais de meio século envolvendo tanto o leitor brasileiro de elite - que se inquieta com aqueles riscos mas se regozija com o quase constante triunfo do autor d 'Os sertões sobre os inimigos das suas virtudes literárias - como o leitor simplesmente atraído pelo que há de menos nobre nos jogos estilísticos do verbo às vezes quase execravelmente oratório do grande escritor; na sua eloqüência por vezes enfática; na sua adjetivação quase sempre crespa, estridente, mais aguda do que grave; nas suas mais repetidas procuras ou recorrências de efeitos teatralmente musicais.
Euclides foi escritor que escreveu quase sempre declamando: às vezes declamando tão alto que se tornou uma espécie de Hall Caine - o Hall Caine de quem dizia Oscar Wilde que falava tão alto que não se fazia entender direito: era apenas ouvido. Ouvido, Euclides vem sendo há mais de cinqüenta anos por muitos dos que o vêm lendo; entendido por outros tantos; admirado por quase todos. Pois é escritor dos que, mesmo quando não são plenamente entendidos, são agradáveis de ser ouvidos através do que escrevem. Escritores nascidos com boa voz. Nascidos escritores sonoros e que potentemente sonoros se consservam, mesmo quando suas mensagens perdem a potência intelectual.
Carlyle foi escritor desse feitio, e sua voz ainda hoje é ouvida com entusiasmo por muitos dos que o lêem. Macaulay, também. E, em língua francesa é não só o caso extremo de um Victor Hugo ou de um Chateaubriand como, sobretudo, o de um superior Jean-Jacques Rousseau, cujas próprias e pungentes confissões nos chegam aos olhos, ferindo-nos os ouvidos de modo tão saborosamente persuasivo que perdoamos sem esforço ao pecador os pecados que confessa em voz tão bela e em palavras tão lúcidas.
Euclides da Cunha não nos confessou em página alguma os próprios pecados: denuncia com voz às vezes bíblica e de profeta mais do Velho que do Novo Testamento - os crimes de alguns dos - brasileiros, seus contemporâneos; e opressões, a seu ver, sofridas de seus próprios patrícios por outros brasileiros, com os quais se identificou de algum modo o escritor um tanto quixotesco em seus rasgos empáticos. É que tendo se sentido vítima ou mártir, ele próprio, da elite política, social, econômica, literária, dominante na jovem República de 1889, fácil foi a Euclides identificar esse seu personalíssimo sentimento com o dos sertanejos da Bahia revoltados contra a civilização do litoral. Revolta justa, segundo ele. Tanto que para justificá-la chegou ao extremo de diminuir as virtudes dos militares da República.
E certo de terem sido os sertanejos de Canudos vítimas ou mártires de uma elite desorientada-a dos homens do litoral - é que Euclides da Cunha escreveu suas páginas mais vibrantes de revelação de um Brasil - o sertanejo - quase ignorado pelos próprios brasileiros: os da capital federal, os de São Paulo, os de Salvador, os do Recife, os de Porto Alegre, os de Belém.
Precisamente a propósito de Canudos, apareceu em 1958, no Rio de Janeiro, uma "análise reivindicatória da campanha de Canudos", intitulada A verdade sobre "Os sertões" que talvez deva ser considerada, em vários pontos, retificação essencial à parte não só convencionalmente histórica como sociologicamente interpretativa da obra máxima de Euclides. É um livro em que o sr. Dante de Melo considera a ação do Exército de Canudos de modo um tanto diferente do que levou Euclides da Cunha a escrever o seu grande livro-protesto.
E possível que o novo ensaio seja mais reivindicatório do que analítico. Nem por isto deixa de ser obra interessante e necessária: sobretudo nas páginas em que procura restituir aos seus exatos relevos fatos que a retórica vem desfigurando há anos. Pois não há dúvida de que o livro-protesto de Euclides concorreu para que a glorificação do sertanejo se consolidasse entre nós à custa de excessivo desapreço pelo homem do litoral: inclusive o simples, porém bravo, soldado do Exército. Talvez exagere o autor da "análise reivindicatória" ao escrever do Exército que foi "a entidade mais honesta e mais sacrificada na luta", isto é, na "guerra de Canudos". Mas parece certo ter o mau estadualismo, inaugurado no Brasil pela República de 1889, criado uma situação desfavorável à ação do Exército - que era uma ação federal, nacional, supra-estadual - e favorável a insurgentes cujo desenvolvimento em força quase-política se verificou em grande parte em conseqüência daquele estadualismo.
O sr. Vítor Nunes Leal - jurista brasileiro dedicado à análise de problemas nacionais de sociologia política - talvez devesse ter estendido seu estudo do fenômeno republicano do "coronelismo" ao episódio de Canudos onde Maciel, a despeito do seu monarquismo, parece ter sido uma das primeiras criações do estadualismo republicano. Estadualismo que foi tornando necessário aos governadores dos estados se apoiarem em "coronéis" ou equivalentes de "coronéis", fortes e privilegiados.
Sendo assim, o Exército teria sido de algum modo vítima, em Canudos, do próprio Exército: do Exército criador da República perigosamente estadualista de 1889. É um aspecto político do problema que não vem destacado naquele sugestivo livro sobre Canudos; e que está a exigir a atenção de um moderno homem de estudo que se especialize na análise do aspecto político do chamado "drama sertanejo". Drama em que parece ter explodido, além de um conflito entre culturas sub-regionais, semelhante ao do Pedra Bonita, um terrível desajustamento dentro do recém-inaugurado sistema de relações políticas dos novos estados com o poder central.
Desse aspecto de sociologia política do problema de Canudos não cuidou Euclides sem que, entretanto, se possa dizer do seu livro que pelos exageros e pelas omissões deixe de ter valor sociológico para apresentar-se como simples obra-prima de jornalismo literário. A verdade é que é livro complexo: notável como literatura e notável como ciência: ciência ecológica e ciência antropológica e até sociológica. Mas sobretudo obra de literatura. Obra de revelação.
Revelação, acentue-se bem; e não simples descrição. Só o escritor com alguma coisa de poético no seu modo de ser escritor é capaz de revelar de uma paisagem ou de uma época, de uma sociedade ou de uma personalidade complexa, os seus característicos profundos e os seus traços decisivos. Os puros cientistas não vão além da descrição - quantitativa, matemática, estática - quando muito completada pela explicação, de qualquer dessas realidades. Só um escritor daquele tipo mais alto, de que Gracián foi até hoje uma das expressões mais vigorosamente sutis - o vigor ibérico acrescentado de argúcia jesuítica - consegue, além de revelar, interpretar o complexo que qualquer dessas realidades contenha. Dentre os modernos, só um Hudson que escreva Green mansions. Ou um Joyce que se reconstitua em Stephen. Ou um Proust que escreva A la recherche du temps perdu. Ou um Mann que interprete o drama de um adolescente. Ou um Strachey que ressuscite a rainha Vitória. Ou um Ganivet que evoque Granada la bella. Escritores ao mesmo tempo líricos e analíticos: combinação raríssima em qualquer língua ou em qualquer literatura.
Vários foram os brasileiros da época de Euclides da Cunha que descreveram e até explicaram, alguns já se servindo de números e estatísticas, aspectos importantes da realidade brasileira em obras de considerável valor científico: Couto de Magalhães, Nina Rodrigues, Sílvio Romero, José Veríssimo, o visconde de Taunay, Teodoro Sampaio, o barão do Rio Branco, Clóvis Beviláqua, Martins Júnior. O que destacou de modo tão vigoroso a literatura de Euclides da classes outros brasileiros, homens de estudo, sobre temas rasgadamente nacionais - e até da própria literatura semi-sociológica de .Joaquim Nabuco, de Eduardo Prado, de Oliveira Lima e de Graça Aranha: quase-sociólogos, notáveis não só pela sua quase-sociologia como pelas suas virtudes literárias de expressão - foi o caráter de obras não apenas descritivas, ou somente evocativas, mas de revelação e de interpretação do Brasil, dos ensaios que escreveu o autor de Os sertões. Não só Os sertões como Contrastes e confrontos, À margem da história. Ensaios de quem se aproximou de temas brasileiros com espírito científico e com preparação técnica: a própria e a de amigos que foram eminências pardas do escritor absorvente, em relação com alguns aspectos mais turvos daqueles mesmos temas. Mas não só com esse espírito nem apenas com essa preparação: também com o gênio capaz de revelar dos assuntos analisados seus traços mais significativos. - Que nessa obra de revelação é que se define o autêntico, o genuíno, o grande escritor; nela é que se afirma sua superioridade sobre os puros especialistas, por mais perfeitos na sua ciência; ou sobre os puros técnicos, por mais exaustivos, no seu saber apenas empírico do assunto versado.
Vários são hoje, na Espanha, os filólogos especializados magistralmente no conhecimento técnico e no saber científico da língua espanhola. Vários os arabistas espanhóis Vários os orientalistas. Mas a um tempo especialista no seu saber de filólogo e generalista no seu domínio sobre assuntos ibéricos de cultura, só um Américo Castro nos vem revelando dessa língua, nem sempre latina no seu espírito, formas de expressão em que a cultura árabe e a cultura israelita se juntam hoje quase em segredo, como se ainda se escondessem mourisca e israelitamente dos dominicanos da Inquisição para animar a mais moderna cultura hispânica de possibilidades, únicas em cultura européia, de comunicação com algumas das emergentes ou ressurgentes culturas extra-européias, em rápida e surpreendente ascensão no mundo dos nossos dias: um mundo de tal modo diverso do de há um século - o de exclusivo e imperial domínio da civilização européia sobre as demais civilizações - que e quase uma negação do seu antecessor.
Foi dessa espécie de obra de revelação que Euclides da Cunha - também especialista no seu saber de engenheiro aplicado ao estudo ou ao conhecimento de problemas brasileiros mas generalista no seu domínio sobre assuntos nacionais de cultura - realizou de modo genial. Revelação dos sertões aos brasileiros do litoral e revelação do Brasil a estrangeiros por este ou por aquele motivo curiosos a respeito do nosso país, e nem sempre satisfeitos com as respostas, à sua curiosidade, dos geólogos, dos geógrafos, dos economistas, dos historiadores, dos sociólogos, dos juristas; ou das estatísticas, dos mapas, dos diagramas.
Daí o triunfo alcançado em meios cultos do estrangeiro pelo livro revelador do Brasil que Euclides da Cunha escreveu, a propósito do drama de Canudos, como quem se definisse escritor mais de dentro para fora do que de fora para dentro do assunto versado no seu ensaio. Do assunto - um assunto teluricamente brasileiro - ele deixou de tal modo se impregnar, não apenas por simpatia, mas, por empatia profunda, que conseguiu comunicar essa sua identificação empática com o seu tema, ao próprio leitor estrangeiro. Pelo menos ao leitor em língua inglesa e ao leitor em língua espanhola d ' Os sertões. São línguas em que não há exagero em dizer-se que o leitor estrangeiro, a despeito do cientificismo por vezes arrevesado de livro tão diferente do comum dos livros, vem tomando conhecimento mais íntimo de uma literatura especificamente brasileira, que através de quantos outros livros de brasileiros, sobre temas nacionais, têm sido publicados em idiomas europeus: os de José de Alencar, os de Joaquim Nabuco, os de Machado de Assis, os de Rui Barbosa, os do visconde de Taunay, os de Graça Aranha, os de Mário de Andrade, os de José Lins do Rego, os de Jorge Amado, os de Érico Veríssimo. E a razão parece a alguns de nós ser principalmente esta: é um livro, a obra-prima de Euclides, em que o autor brasileiro não temeu ofender o leitor europeu com o seu tropicalismo; ou picá-lo com o seu brasileirismo. Ao contrário: ostentou-o. Exibiu-o quase escandalosamente. Não se fingiu de inglês, como, de certo modo, o apolíneo Machado de Assis; nem de francês, como até certo ponto o igualmente apolíneo Joaquim Nabuco, que até a um francês de longa experiência literária de Faguet enganou com as sutilezas de Pensées détachées.
Euclides da Cunha esplende de tropicalismo; arde de brasileirismo. É dionisíaco e até exuberante no seu modo de interpretar-se e de interpretar o Brasil aos olhos de outros brasileiros e aos olhos de estrangeiros voltados para o Brasil.
Compreende-se que, assim dionisíaco, tenha escandalizado não só puristas como um apolíneo da cabeça aos pés como foi, se não na mocidade, na idade provecta, Joaquim Nabuco, a quem os livros de Euclides teriam dado a impressão de escritos rudemente, agrestemente, com um cipó. Mas compreende-se, por outro lado, que essa literatura agrestemente brasileira tenha dado a europeus menos convencionais que tais quase-europeus ou subeuropeus nos seus gostos literários, a aventura de uma nova conquista de paladar: aventura dificilmente encontrada pelos mesmos europeus nos romances brasileiros de um Machado ou de um Graça Aranha ou de um visconde de Taunay. Romances nos quais vários desses europeus, em vez de novos sabores, têm candidamente confessado a amigos brasileiros haver encontrado apenas sabores já seus velhos conhecidos, com um ou outro salpico de tempero exótico. A verdade é que o tempero brasileiro é às vezes mais forte do que se pensa em alguns dos romances e, sobretudo, nos melhores contos de Machado. Mas são de uma força de tal modo sutil que às vezes desaparecem quase de todo nas traduções ao francês e ao inglês daquelas obras-primas brasileiras. Destino que dificilmente podem ter as cruezas tropicais e os ardores brasileiros de Euclides - do seu verbo eloqüente e das suas técnicas expressionistas de arte literária. São cruezas que se projetam nas próprias traduções, provocando arrepios e até repulsas da parte do europeu mais cartesiano, ou mais renaniano; mas acabando por se imporem ao paladar literário desses sofisticados como aventuras que lhes trouxessem novas sensações do mundo e novas visões do homem, através de uma arte literária diferente da européia; com outro ritmo; com outras sugestões de doçura dentro de outras sugestões de violência: as contraditórias sugestões de doçura e de violência que Euclides soube estilizar, encontrando-as tanto na natureza dos ambientes como no homem das terras quentes e tropicais mais do seu gosto: as regiões amazônicas, e as áridas ou sertanejas do Brasil.
Quem lê os ensaios de Euclides da Cunha não precisa buscar um autor que se escondesse naquela niebla de ausencia de que fala, em página recente, um crítico de língua espanhola a propósito de certo escritor sul-americano do tipo do brasileiro Machado. Euclides pertence ao número de autores que não se deixam buscar ou procurar pelo leitor: vêm ao seu encontro. Apresentam-se. Exibem-se. Nenhum escritor de língua portuguesa mais presente na sua literatura do que ele. Nenhum mais ostensivo na sua presença. Seu próprio brasileirismo, por vezes enfático, talvez fosse uma expressão do que o autor julgava ser, em si mesmo, presença ameríndia: tapuia. Admitia que fosse um "tapuio" modificado por outras presenças - pela "grega" e pela "celta". Mas a consciência de ser homem de sangue ameríndio parece ter-se tornado nele outra consciência: a de dever ser um escritor com alguma coisa de não-europeu e até de antieuropeu em sua visão do ambiente nativo e em sua expressão ou em sua interpretação desse ambiente. Não só escritor: homem público. Daí seu nacionalismo ou, antes, brasileirismo: um brasileirismo difícil de ser separado do seu indigenismo. Era nos "admiráveis caboclos do Norte", por exemplo, que ele via o futuro da Amazônia brasileira: caboclos capazes de sobrepujarem "pelo número, pela robustez, pelo melhor equilíbrio orgânico da aclimação e pelo garbo no se afoitarem com os perigos" quantos estrangeiros tentassem se estabelecer em terras de seringais. O que era preciso era que o "engenheiro" - Euclides era engenheiro, além de "caboclo" - amparasse, sob o comando de um governo consciente da sua missão, aqueles bravos, na sua obra de integração da Amazônia no conjunto nacional brasileiro; e os amparasse pondo-os em intimidade permanente com o resto do país "através de comunicações fáceis": além de estradas de ferro, "a aliança das idéias, de pronto transmitidas e traçadas na inervação vibrante dos telégrafos". É a mensagem sociológica que nos transmite o seu ensaio "Entre o Madeira e o Javari", incluído no livro Contrastes e confrontos (Porto, 1913).
O Euclides da Cunha preocupado com o futuro brasileiro da Amazônia era o mesmo Euclides da Cunha em quem o drama de Canudos despertara o mais intenso dos brasileirismos, reclamando dele um esforço construtivamente nacionalista em que ao "espírito caboclo" juntou-se a formação de engenheiro e a preocupação do sociólogo. Ou do ecologista social. Esses três aspectos da personalidade do autor d'Os sertões foram os aspectos básicos de sua ação: sua literatura está quase toda animada por estas três presenças. Ele nunca se contentou em ser nem beletrista nem subeuropeu: o escritor, em Euclides, incluiu sempre o engenheiro e implicou sempre viva e até vibrante solidariedade do autor com o indígena do Brasil. Com o caboclo. Com o "tapuio": um "tapuio" que dentro dele se conciliasse com o "celta" e com o "grego".
Compreende-se assim que o tenham entusiasmado aquelas páginas do primeiro Roosevelt nas quais o vigoroso político, misto, segundo Euclides, de rough rider e de quaker, fez o elogio das civilizações autênticas; e combateu as de empréstimo:
Essa espécie de regimen colonial do espírito que transforma o filho de um país num emigrante virtual, vivendo, estéril. no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo.
Para nós, brasileiros - pensava Euclides - é que pareciam feitas aquelas palavras porque entre nós é que se faz mister repetir longamente e monotonamente, mesmo, que mais vale ser um original do que uma cópia... e que o brasileiro de primeira mão, simplesmente brasileiro, malgrado a modéstia do título, vale cinqüenta vezes mais do que ser a cópia de segunda classe, ou servil oleografia, de um francês ou de um inglês.
E outra de suas mensagens sociológicas que nos transmite aquele seu livro de pequenos mas vibrantes ensaios.
Nesse seu elogio ao primeiro Roosevelt, Euclides da Cunha como que resumiu o seu credo de brasileiro, inseparável do seu credo de escritor: o que ele desejava para o seu país era um Brasil corajoso de suas originalidades caboclas, mesmo modestas, que se realizassem mercê de modernas técnicas de engenharia que o Estado pusesse a serviço do desenvolvimento nacional; o que ele desejava para si próprio, Euclides da Cunha, era a coragem de desenvolver-se, em escritor diferente dos europeus: consciente de sua condição de "caboclo" - embora sem desprender-se da de "celta" e da de "grego"; capaz de juntar para proveito do Brasil, à sua literatura, sua engenharia; observador do Brasil, através do que fosse "empírico" no seu conhecimento sociológico da realidade brasileira, como "os arquitetos" das "fórmulas empíricas da resistência dos materiais". Assim se conformaria ele, por um lado, com os modernos triunfos da ciência empírica; por outro, com as melhores tradições, senão literárias, dinâmicas, da gente do seu e nosso país, certo como lhe parecia que "os nossos melhores estadistas, guerreiros, pensadores e dominadores da terra" os que "engenharam" - note-se o verbo caracteristicamente, narcisistamente, euclidiano - "as melhores leis e as cumpriram", "os homens de energia ativa e de coração que definiram com mais brilho a nossa robustez e o nosso espírito - todos sentiram, pensaram e agiram principalmente como brasileiros". É o que se lê num dos mais expressivos dos seus pequenos ensaios reunidos em Contrastes e confrontos: "O ideal americano" - apologia de quantos brasileiros antigos souberam engenhar brasileiramente o Brasil.
Assim agiram, sentiram e pensaram os próprios construtores daquela civilização patriarcal agrária e escravocrática que deu ao nosso país valores e originalidades que Euclides da Cunha - entusiasta sobretudo de bandeirantes e sertanejos - nunca demorou-se em apreciar ou admirar: viu-as apenas de soslaio. Noutro dos seus ensaios - "Entre as ruínas" - fixou a tristeza das ruínas dessa civilização, antes sedentária que andeja, sem muita simpatia pela "arquitetura terrivelmente chata" das casas-grandes de fazendas e dos engenhos antigos. Mas de qualquer modo, reconhecendo:

...malgrado o deprimido das linhas, essas vivendas quadrangulares e amplas, sobranceando as senzalas abatidas, os moinhos estruídos, os casebres de agregados, e alteando de chapa para a estrada os altos muramentos de pedra, que lhes sustentam os planos unidos dos terrenos, conservam o antigo aspecto senhoril.

Nenhuma palavra de lamentação para o desaparecimento da gente senhoril e da população servil que animaram solares; e que animando-as, criaram, mais que os bandeirantes, um Brasil autêntico em profundidade. Só o registro da decadência do agregado:
O caipira desfibrado, sem o desempeno dos titãs bronzeados, que lhe formam a linhagem obscura e heróica... uma ruína maior por cima daquela ruinaria da terra.
Só o registro da decadência do caboclo das fazendas: simples comparsa de um drama que teve por personagens decisivos os senhores brancos e os escravos de cor. Por onde se confirma - um exemplo dentre vários - que foi constante, em Euclides, o afã de idealizar e romantizar o indígena; o ameríndio; o caboclo - isto é, o brasileiro mais próximo do escritor; mais seu irmão; mais do seu sangue, e mais da sua terra. Do mesmo modo que foi constante nele o critério de caracterizar paisagens, reduzindo-as não só a expressões de "resistência de materiais" - um critério de engenheiro - como a manifestações de violência do homem contra a natureza: um critério dc ecologista. Ecologista, engenheiro e caboclo repita-se que são presenças constantes no escritor Euclides da Cunha: nos seus temas; nas suas visões de terras e de populações brasileiras; no seu estilo. No seu famoso estilo cuja originalidade parece decorrer, em grande parte, da fusão desses três homens num só escritor: fusão que pela primeira vez aconteceu nas letras brasileiras realizada pelo autor d'Os sertões.
Não que antes dele não tivesse havido no Brasil quem procurasse pôr a engenharia a serviço do desenvolvimento nacional: foi no mais que se empenharam engenheiros como Rohan, Rebouças, Monteiro Tourinho, Pimenta Bueno, Buarque de Macedo, Bicalho, Pereira Passos, os dois Mamede. Nem escritor animado do afã de valorizar o indígena: José Bonifácio - foi o primeiro de uma série de indigenistas notáveis -, José de Alencar, Gonçalves Dias, Couto de Magalhães. Nem ecologista preocupado em harmonizar o brasileiro com a natureza do interior do Brasil: a Alexandre Rodrigues Ferreira se sucederam Azevedo Pimentel, Luís Cruls, Teodoro Sampaio. Eram, porém, afãs separados e da parte de homens de vocações diferentes. Em Euclides da Cunha esses afãs se uniram pela primeira vez dentro de um escritor de forte gênio verbal; e que foi, ao mesmo tempo, indigenista, engenheirista e ecologista nas suas principais constantes de sentimento, de pensamento e de ação. Dessa fusão resultou não só uma obra singular nas letras brasileiras como um estilo também novo, em língua portuguesa, por ter se desenvolvido como expressão de um novo tipo de personalidade criadora: uma personalidade complexa, na qual ao gosto pelos temas telúricos se juntava o entusiasmo pelas soluções técnicas as mais arrojadamente modernas.
De modo que é uma presença, a de Euclides da Cunha na vida e nas letras brasileiras, que inclui - repita-se - a presença de três homens diversos, mas, no seu caso, complementares, fundidos ou reunidos num só e grande escritor. Daí ser uma influência, a sua, que, complexa como é, talvez exceda em importância, em extensão e mesmo em profundidade a de qualquer outro intelectual brasileiro - sem nos deslembrarmos nem de José de Alencar nem de Machado de Assis; nem de Rui Barbosa nem de Joaquim Nabuco; nem de Gonçalves Dias nem de Castro Alves. Nenhum deles parece vir alcançando tantas zonas de sensibilidade ou de receptividade a influência de um escritor.
Isto sem entrarmos em avaliações ou comparações de mérito especificamente literário à base da influência de cada um: considerando-se o caso de Euclides da Cunha o caso complexo que foi e continua a ser dentro da cultura e da vida - e não apenas das belas-letras - nacionais. Só considerado assim - nessa sua complexidade - pode Euclides da Cunha ser estimado ou avaliado como influência, ainda hoje viva, entre seus compatriotas.
Influência nem sempre saudável. Ao exemplo do seu estilo se deve muito arrevesado de frase, na língua portuguesa do Brasil, em que, da imitação de um ritmo, de uma pontuação, de um vocabulário extremamente pessoais, resultou por algum tempo muita caricatura; e caricatura grotesca.
Por outro lado Euclides foi dos grandes escritores brasileiros um dos que mais deixaram à mocidade do seu país o exemplo de que ser um escritor homem de estudo metódico e homem de trabalho sistemático não significa escassear-lhe o talento ou faltar-lhe o gênio. Neste particular ele pertenceu ao número dos Rui Barbosa, dos Joaquim Nabuco, dos Machado de Assis. Em vez de ter valorizado a tradição do escritor boêmio e improvisador, valorizou a outra: a do escritor, homem de estudo. A do escritor, homem de trabalho. Com o que prestou um serviço imenso à cultura nacional, vítima, ainda hoje, do mito que associa ao escritor de gênio as boêmias de café ou as bebedeiras nas cervejarias.
Euclides - recordou uma vez do autor d'Os sertões o cronista João Luso, que o conhecia de perto - "escrevia com grande lentidão". Não só com "grande lentidão": também à base de conhecimento objetivo e de estudo honesto do tema que versasse. Era antes scholar que diletante: ele próprio comparou-se uma vez - informa João Luso - com certos pássaros que para despedir o vôo precisam de trepar primeiro a um arbusto. Abandonados no solo raso e nu, de nada lhes servem as asas; e tem que ir por aí afora à procura do seu arbusto.
O seu arbusto, dizia Euclides que era "o Fato".
Foi outro exemplo que Euclides da Cunha deu aos seus compatriotas mais jovens: o de procurarem no conhecimento quanto possível vivo, direto, dos fatos brasileiros, matéria para a criação ou expressão literária. Estimulou assim o desenvolvimento, em nosso país, de uma literatura firmada na observação, no estudo, na análise de fatos caracteristicamente nacionais: os sertanejos e os amazônicos, principalmente. Por conseguinte, regionais. Dessa literatura se pode dizer que vem sendo ecológica ou sociológica nas suas tendências; mas salientando-se da de Euclides que, por ter sido ecológica ou sociológica e até nutrida da ciência ou da técnica do engenheiro de campo, que nunca deixou de ser arte; não deixou de modo algum de ser literatura. É que o escritor dirigiu, em Euclides da Cunha, a colheita, a seleção e a interpretação do material além de ecológico, sociológico, por ele utilizado como combustível de suas criações literárias. E o escritor em Euclides não foi um publicista apenas - o caso de Alberto Torres. Foi um artista. Foi um poeta. Foi escritor dos grandes: dos animados do gênio da revelação. Portanto escritor daquele tipo do qual escreve um crítico dos nossos dias, o professor Leo Lowenthal, que é quem retrata da realidade what is more real than reality itself. Só o escritor - acrescenta o professor Lowenthal no seu Literature and the image of man - sugestivo ensaio de sociologia da literatura - ou, antes, só a literatura, presents the whole man in depth... Foi o que conseguiu Euclides da Cunha: traçar do sertanejo um retrato em profundidade em que a figura do homem se integra de tal modo na paisagem que a ninguém é possível destacar o homem assim retratado do seu meio absorventemente materno. Só em literatura acontecem tais revelações e tais interpretações de paisagens e de homens porque só a literatura - voltemos a este ponto - é revelação. Só o escritor que seja também poeta no lato sentido alemão da palavra revela dos personagens, das paisagens das sociedades que a sua arte ressuscita ou surpreende ainda em movimento, as intimidades mais características. Só o grande escritor: nunca o pequeno nem sequer o médio. Só o grande escritor: nunca o cientista que sendo apenas cientista, escreva claro e correto; nem o especialista incapaz de transpor sua especialidade, não para invadir especialidades alheias, mas para dominar os assuntos que versa, como todos inter-relacionados. Daí, na caracterização da paisagem dos sertões, Euclides da Cunha ter realizado - mesmo resvalando em pequenos erros técnicos - uma revelação do caráter dessa paisagem que nem o geólogo Orville Derby nem o geógrafo Teodoro Sampaio - suas principais eminências pardas - teriam jamais conseguido sequer esboçar; menos, ainda, realizar. E ter levantado um perfil antropológico do sertanejo que nem três Ninas Rodrigues reunidos teriam sido capazes de levantar. Euclides da Cunha nunca nos põe diante de simples e perfeitas fotografias nem de sertanejos e de sertões; nem de seringueiros e de seringais - fotografias reunidas para que ele apenas as colorisse a mão; e assim coloridas, mas sem retoques nos seus traços, constituíssem o material científico de algum vasto gabinete de identificação que, em vez de policial, fosse sociológico. Mesmo porque seu forte nunca foi procurar acentuar as cores dos homens e das paisagens; e sim as suas formas. Foram precisamente os traços dos seus retratados que ele retocou e alterou, para neles acentuar características a seu ver essenciais. Nos seus ensaios, ele nos põe diante de retratos de homens e de interpretações de paisagens traçados por uma técnica singularmente sua em que ao impressionismo se acrescenta por vezes um expressionismo arrojado e personalíssimo: a intensificação na realidade do que nela o escritor encontrou de mais real. Foi intensificando e até exagerando na realidade o que dela lhe surgisse aos olhos e à sensibilidade como mais real que a realidade, que ele nos deixou, além de um retrato, hoje clássico, de sertanejo, vários retratos menores, mas igualmente significativos, de homens-símbolos. Não pode dizer-se conhecedor do Brasil quem ignore esses retratos e essas interpretações; e conheça apenas fotografias sociológicas ou geográficas dos homens e das paisagens que Euclides da Cunha retratou através daquele seu método menos impressionista que expressionista.
Destaque-se ainda de Euclides da Cunha que não se limitou a retratar indivíduos de uma só classe ou de um só grupo social mas de vários, embora seu brasileiro-ideal fosse evidentemente o sertanejo completado pelo seringueiro; e este, um meio-termo entre o burguês e o proletário, não podendo servir para símbolo de reivindicações de uma classe contra outra. Nem foi um drama de conflito de classes nem sequer de raças o que se verificou em Canudos, embora do verdadeiro caráter de luta entre soldados e jagunços o autor d'Os sertões não tenha se apercebido de todo: o caráter de um choque entre culturas. Daí resvalar por vezes, tanto quanto seu contemporâneo Sílvio Romero e, talvez, por influência do também seu contemporâneo Nina Rodrigues, em incertezas quanto à exata situação biológica do mestiço; o qual, biologicamente inferior, seria também sociologicamente incapaz de concorrer para o progresso brasileiro com que sonhava a engenharia de Euclides. É evidente que sua descrença no mestiço por preconceito cientificista era uma descrença que alcançava principalmente o mulato e o cafuzo; e não o ameríndio que tivesse apenas o seu toque de "celta" ou de "grego" e se conformasse, aos olhos de Euclides, à sua imagem talvez um tanto romântica do sertanejo ou do nortista desbravador da Amazônia. Mas não há dúvida de que, como Nina Rodrigues, e como, em certas fases de sua vida, o contraditório Sílvio Romero, Euclides padeceu daqueles preconceitos cientificistas contra mulatos e cafuzos, concorrendo, talvez, para o "arianismo" dos Oliveiras Vianas: seus sucessores imediatos nos estudos de homens e populações brasileiras. Resvalaram esses Oliveiras Vianas naquele preconceito, ao contrário dos Roquete Pinto que, entusiastas de Euclides e do seu sertanismo, retificaram-no sem demora neste particular, do ponto de vista antropofísico; e o fizeram, estando ainda quente a presença do autor d 'Os sertões nas letras nacionais. Do ponto de vista antropossocial ou antropocultural é que a retificação não só ao autor d 'Os sertões como a Nina Rodrigues só se faria, de modo decisivo, mais de um quarto de século depois da morte de Euclides da Cunha. Mas isto é outra história, como diria o inglês embora história não de todo estranha à avaliação que hoje se faça da influência do grande escritor não só sobre as letras como sobre os estudos antropológicos e sociológicos no seu país. Foram estudos que sua presença marcou de modo tão notável como marcou as letras nacionais: o ensaísmo literário que, sob a reorientação que ele deu a esse gênero de expressão ganhou novas perspectivas em língua portuguesa. Tão novas que talvez não haja exagero em falar-se de um tipo euclidiano de ensaio.
Diz-se da ciência que é a analítica teórica e impessoal, enquanto a arte é sintética, prática e pessoal, além de orgânica. Na obra de Euclides da Cunha predominaram as virtudes artísticas sobre as científicas. E sua própria maneira de ser cientista foi uma maneira hispânica ou ibérica, admitindo a presença do analista na obra de análise: maneira que Nietzsche parece ter aprendido dos espanhóis - sobretudo de Gracián - ao comunicar aos seus estudos filológicos alguma coisa de psicológico que terminou sendo alguma coisa de poético. Não erraria, quem dissesse do autor d 'Os sertões que foi, à sombra dessa tradição, mas excedendo-a, uma antecipação do moderno humanista científico: tipo de ensaísta que na língua inglesa vem se afirmando de Havelok Ellis a Julian Huxley, de Lawrence da Arábia a Bertrand Russell, de William James a Herbert Read. Esse humanismo científico ele o aplicou principalmente a temas brasileiros: à análise de homens ou de populações regionais e nacionais à qual acrescentou não só a revelação de intimidades características desses homens e dessas populações como a glorificação de valores por eles, a seu ver, encarnados. Nessa glorificação se expandiu seu pendor para o que fosse prático, orgânico e até pessoal nos mesmos temas, de preferência ao que neles se prestasse apenas a análises impessoais e a generalidades abstratas.
Há quem pense de Euclides da Cunha que, "embora nascido no estado do Rio", ficou "intimamente ligado à literatura nordestina, cuja civilização particularista estudou em suas páginas sensacionais". É a opinião do professor Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) à página 59 do seu Quadro sintético da literatura brasileira (Rio, 1956). A propósito do que acrescenta o eminente crítico:
A região nordestina no Brasil é tão típica, em seus costumes, como a região amazônica, a mineira, a gaúcha ou a do litoral central.
E lembra já haver outro crítico, o hoje acadêmico Viana Moog, "também romancista e ensaísta de valor", proposto uma "divisão da literatura brasileira baseada nessas idiossincrasias regionais". Com essas digressões - precedidas pelo reconhecimento de um "regionalismo" mineiro (Afonso Arinos) a que se teria juntado um "regionalismo" paulista (Valdomiro Silveira) sem que ao ilustre historiador do Quadro sintético tenha ocorrido a necessidade de desses regionalismos e do gaúcho e do mero "pernambucanismo" de Joaquim Nabuco ou do superficial "sertanismo" de Catulo da Paixão Cearense distinguir-se o muito mais complexo regionalismo em 1924 nascido no Recife - o professor Alceu Amoroso Lima enche a meia página em que deveria ter fixado seu julgamento sintético da obra de Euclides da Cunha. O que é pena pois nesse julgamento sintético de Euclides pelo mestre atual mais admirado e mais respeitado da crítica literária no nosso país teria se resumido a moderna atitude de toda uma elite intelectual - a dos críticos literários nacionais - com relação ao autor d 'Os sertões. Não se compreende que muito mais do que Euclides tenha merecido do professor Amoroso Lima, isto é, dos seus julgamentos sintéticos, Rui Barbosa, um tanto arbitrariamente apresentado pelo crítico-historiador como "porventura a mais internacional das nossas grandes figuras literárias, no sentido amplo do termo" (p. 47); primazia que evidentemente cabe antes a Euclides ou a Machado que a Rui. É uma ilusão, essa, da parte de numerosos brasileiros, de ser Rui Barbosa - que tanto significou, na verdade, para nós, seus compatriotas, e ainda significa, como invulgar jurista-político em quem às virtudes acadêmicas de grande erudito nessas matérias, nas letras clássicas e na filologia, se juntou o carisma de bravo homem de ação e de incansável doutrinador de liberalismo, por um lado e por outro, de casticismo - um brasileiro significativo para os meios cultos estrangeiros por qualquer motivo interessados no Brasil. É uma ilusão acreditar-se na importância da repercussão, no estrangeiro, de seus triunfos político-jurídicos e oratórios na Haia: muito maior foi, na mesma época, a repercussão das teses em prol do mestiço brasileiro defendidas em Londres, em congresso internacional de cientistas, pelo professor J. B. de Lacerda. É uma ilusão imaginar-se Rui sob o aspecto de "figura literária" brasileira que tenha impressionado ou impressione ou seduza hoje, estrangeiros, por suas virtudes literárias. Ao afirmá-lo, o crítico e professor Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) resvala num mito que por sua condição mesma de crítico deveria ser o primeiro a retificar. Pois semelhante repercussão de Rui no estrangeiro não existe senão em meios europeus ou americanos influenciados diretamente pelo culto brasileiro ao mesmo Rui.
Para Euclides da Cunha tem se voltado, da parte de estrangeiros interessados em literatura, ou nos trópicos, ou em gentes exóticas, em geral - e não apenas no Brasil - senão sempre uma admiração, uma curiosidade que talvez se explique pelo fato de ser a literatura do autor d'Os sertões, mais do que a de Rui Barbosa ou do que a de Joaquim Nabuco ou mesmo a de Machado de Assis, diferente das produções européias; tocada - ainda mais que a de José de Alencar: seu predecessor mais importante neste particular - por alguma coisa de agreste ou de tapuio em sua arte e em seus motivos combinados. Por conseguinte, uma literatura de sabor um tanto novo para o estrangeiro, a quem o próprio Machado de Assis desaponta quando seu humour é o subinglês dos seus romances e das suas crônicas - humour tão surpreendente para o paladar brasileiro - em vez de ser a graça já sutilmente carioca que caracteriza, mais do que os seus romances e as suas crônicas, os seus contos. E justamente pelos contos é que Machado de Assis vem competindo com Euclides da Cunha na sedução que os dois, muito mais do que Rui Barbosa, vêm exercendo sobre estrangeiros.
Em resumo: se é exato o que aqui se diz ou se sugere, compreende-se que à obra de Euclides da Cunha pareça destinada a missão de abrir para europeus e para outros estrangeiros caminhos à compreensão do Brasil através da literatura brasileira, que nenhum outro escritor já clássico do nosso país vem conseguindo sequer desbravar. Pareceu que Alencar o faria, completado pela propaganda que dele fez com não pequeno entusiasmo um inglês do prestígio de Burton. Mas a repercussão de Alencar na língua inglesa enlanguesceu cedo. Difícil tem sido igualmente aos brasileiros convencerem os estrangeiros da importância literária de Machado: a importância que nós, com inteira razão, lhe atribuímos, à base do que Machado trouxe para a literatura nacional, da literatura inglesa, acrescentando a essa difícil importação alguma coisa de discreta e sutilmente sua, quase impossível de ser transmitida aos estranhos através de traduções. A eterna história das conchas que retiradas da praia perdem quase todo o encanto, tornando-se tristes e inexpressivas.
De Euclides, se sabe que em certas línguas, como a sueca, vem sendo um fracasso absoluto. Na língua inglesa e na espanhola, porém, já atravessou a prova de sobreviver às primeiras edições. Vem se afirmando, mais que qualquer daqueles dois e do que Taunay ou Graça Aranha, escritor polivalente. Isto é, escritor quase tão fascinante dos leitores sob a forma de escritor traduzido - bem traduzido, é claro - quanto sob a forma de escritor na língua materna.
A EXCLUSÃO SOCIAL DO JAGUNÇO E O OLHAR DA CLASSE DOMINANTE:
SUJEITOS A EXTERMINAR
EVERTON DE PAULA
Universidade de Franca
everton@francanet.com.br
O arraial de Canudos foi fundado por Antonio Vicente Mendes Maciel, o Antonio Conselheiro, em 1893, no interior baiano. Passara ele os dez anos anteriores peregrinando pelo sertão do Ceará e da Bahia, pregando, construindo igrejas e cemitérios. Canudos, ou Belo Monte, como também ficou conhecido o local, trazia vestígios de ter sido uma fazenda de criação de gado, localizada à beira do rio Vaza-Barris.
Em Canudos, Antonio Conselheiro criou um regime econômico-social igualitarista, com a abolição da propriedade privada, do casamento civil, da moeda republicana e de outras instituições consideradas civilizadas pela sociedade brasileira da época, que vivia a euforia da República recém-instalada e ainda comemorava, embora com menor fragor, o fim do regime escravocrata.
Conselheiro imprimia um governo despido de privilégios; os bens e as riquezas individuais eram entregues ao tesouro comum, que provia a todos, segundo as necessidades do indivíduo ou da família. Mas não cuidava apenas das necessidades materiais de seu povo, que à época da guerra chegava, provavelmente, a 15.600 pessoas. A seu modo, levava-lhes a palavra de um Deus justo, bondoso mas exigente, que abria as portas do céu a quem sofresse as agruras da terra e a quem se penitenciasse. Jogar a vida em luta pelo bem da posse coletiva, notadamente da terra, era o bem individual supremo. O trabalho e o comparecimento às ladainhas, rezas e pregações do “profeta” eram obrigatórios. A maior parte das atividades de interesse comum era praticada coletivamente.
As autoridades políticas, religiosas e militares da época acomodaram-se no exercício de um só olhar sobre Conselheiro e seus jagunços : formariam eles um bando de desordeiros, foras-da-lei, monarquistas, insuflados pelo desejo infrene de queda da República e de retorno do regime monárquico. Faltou-lhes a análise do outro lado da moeda : a percepção do isolamento social, da exclusão social que implicaria inexoravelmente o atraso cultural traduzido no fanatismo religioso, no negar a República que desconheciam, a civilização que lhes era mostrada pelo brilho da baioneta e pelo clarão da artilharia.
Em verdade, os jagunços formavam uma grande concentração de pobres do campo. Quando chegaram a Canudos, havia cinco anos fora abolida a escravatura negra e quatro de proclamada a República. Mas aquelas mudanças na fisionomia política do País, impostas embora por certas modificações na estrutura econômica, em nada melhoraram a sorte dos trabalhadores e muito menos da grande massa do campo submetida pelos senhores latifundiários.
FACÓ (1965 : 78) assim se expressa a respeito:
Mantinha-se intacta a grande propriedade territorial semifeudal. Tanto o escravo de ontem como os agregados, os moradores, os foreiros, os chamados trabalhadores livres, não passavam de semi-servos do latifundiário.
Com a derrubada da Monarquia, em 1889, na República partilhavam o poder do Estado os latifundiários e a burguesia, ambos se temendo mutuamente. Os primeiros, depois de perderem a escravaria, receavam perder os feudos; os segundos, sonhando com empreendimentos industriais, ferroviários, modernização da agricultura, necessitavam de braços livres, mas temiam liquidar o regime latifundiário.
O agrupamento, a concentração dos pobres dos campos nordestinos em Canudos, sob a chefia de Antonio Conselheiro, nesse dado momento econômico da história brasileira assustava burgueses e latifundiários. Entre 1891 e 1895, escasseavam os cereais em que os Estados nordestinos tinham baseada sua frágil economia, além do açúcar. A importação do milho estrangeiro crescia assustadoramente. A importação do arroz e do feijão aumentava em igual medida. Enquanto isso, no mesmo período, reduziam-se drasticamente as exportações do açúcar. Em conseqüência da emigração de camponeses pobres do Nordeste para o Sul e para a Amazônia, onde avultava a cultura da borracha, Estados como o Ceará, que sempre havia produzido cereais para a sua subsistência, atravessavam grande escassez. E, para piorar o quadro, em 1896, o principal produto de exportação do Brasil, o café, base de toda a vida econômica nacional, entra pela primeira vez em crise de superprodução. Os preços caem violentamente enquanto se acumulam os estoques invendáveis.
No último decênio do século XIX, com essa crise do café, os trabalhadores que abandonavam as fazendas arruinadas do Nordeste já não podiam mais livremente demandar os cafezais de São Paulo e Estado do Rio. No mesmo ano de 1896, ano em que se inicia a luta armada nos sertões da Bahia, as classes dominantes já demonstravam incerteza diante do futuro e em face da própria realidade. Falava-se em calamidade pública, não havendo como ocultar que a situação no campo se agravava constantemente.
Se por um lado a situação era notadamente grave, atingindo o setor mais numeroso da população, as massas campesinas pobres eram ignoradas e silenciadas. A elas não havia caminho de ida. E à classe dominante não havia acolhê-los.
Este é um fator que não pode ser ignorado quando o assunto volta-se à questão da exclusão e isolamento social do jagunço.
Voltemos a FACÓ (1965 : 81) que dá sua visão sobre o problema :
O trabalhador do campo no Brasil fora sempre considerado pelos grandes fazendeiros e seus porta-vozes como simples escravo ou servo, geralmente equiparado aos animais de carga, como o fazia ainda em 1887 um agrônomo baiano, Cristóvão Campos defendendo tese em Salvador, intitulada Capital rodante da propriedade agrícola, apresentada à Imperial Escola de Agronomia da Bahia. Opinava ele que a moléstia dos operários trabalhadores rurais e dos animais eram obstáculo de pouca importância para uma propriedade bem dirigida.
E não só as moléstias, também a fome e a penúria de tudo na vida do trabalhador do campo eram em geral consideradas coisa normal, tanto pelos grandes fazendeiros como por seus representantes no Governo, no Parlamento, na imprensa, nas escolas. Discutia-se tudo a respeito da terra : questões ligadas aos métodos de cultivo, se os melhores animais de tração eram os bois ou os cavalos, a conveniência da pequena ou da grande propriedade territorial, adubos. Só não se via a mola mestra de toda a vida econômica do País então : o trabalhador rural, o camponês sem terra. Era como se se tratasse de um elemento tão “natural” como a própria terra, fazendo parte dela como o humo.
O que importava era manter o latifúndio, os privilégios odiosos do latifundiário.
Daí surge a questão-fulcro deste capítulo; se para as classes dominantes o trabalhador pobre do campo, sem-terra, representava simplesmente uma força bruta como o boi ou o cavalo, um elemento natural como a terra, uma energia orgânica como o adubo, como essas mesmas classes dominantes haveriam de entender um grupo organizado de campesinos, armados, chefiados por um líder religioso, dotados de um mínimo senso critico capaz de levá-los a defender sua vida, seu pedaço de terra, suas crenças ?
Seria óbvio supor que causasse horror às classes dominantes qualquer tentativa de quebrar o sagrado monopólio da terra. Afinal, a agricultura era o latifúndio, a exploração semifeudal, a opressão sem limites da massa campesina despossuída. Tinha-se a propriedade territorial como a grande propriedade, cuja ordem só estaria garantida enquanto houvesse o monopólio da terra por uma minoria. A ordem no campo, em última análise, consistia no predomínio absoluto dos latifundiários, e sua sobrevivência como classe estava condicionada à existência da grande massa dos sem-terra.
A partir desses pressupostos, há de se entender que os jagunços, ao longo da Campanha de Canudos, não estavam combatendo a República. Aqueles milhares de sem-terra armados estavam em defesa (e não em ataque) pela própria sobrevivência, em luta, ainda que espontânea , não consciente, contra a monstruosa e secular opressão latifundiária. Equivale a dizer que estavam violando abertamente o mais sagrado de todos os privilégios secularmente estabelecidos desde os começos da colonização européia no Brasil – o monopólio da terra nas mãos de uma minoria a explorar a imensa maioria.
Era, sem dúvida, o mais nefando dos crimes contra a ordem dominante.
Entendamos por ordem dominante aquela formada pelos republicanos, o Exército a serviço da República, os latifundiários e seus representantes no Parlamento e na imprensa.
Imagine-se o seu espanto, a sua perplexidade ante um movimento armado no campo. Admitir que se batiam os pobres do campo contra a opressão feudal era admitir que tinham o direito de fazê-lo. Era admitir o feudo e a miséria dos trabalhadores. Assim, sentiram a necessidade de ocultar aquelas que, em sua concepção, seriam as verdadeiras causas das lutas que surgiam no interior da Bahia, esconder seus reais objetivos.
Diz FACÓ (1965 : 82, 83 ) :
Procuraram sempre, através de toda a história do Brasil, desvirtuar essas lutas no nascedouro, apresentando-as como simples atos de banditismo. Esmagavam-nas de um golpe ou tratavam de desalojar os combatentes, dispersá-los, para deformar o sentido inicial da luta e o motivo determinante, e transformar os insurgentes em reles bandoleiros, condenando-os ao papel de salteadores, sem apoio firme entre as populações rurais às quais estavam ligados mais diretamente e onde constituíam uma ameaça à grande propriedade territorial.
Mas, enfrentar um baluarte fixo em pleno sertão, cercado pela simpatia e o apoio das populações rurais como foi Canudos, era uma situação nova para as classes dominantes.
Por isso, quando rebentou a luta armada dos habitantes de Canudos, fazendeiros, Governo, toda a imprensa das classes dominantes, republicana ou restauradora, mostraram-se mais que surpresos – alarmados.
Para tirar-lhe a importância social, caracterizaram-na desde logo como um surto de banditismo ou fanatismo religioso, e nada mais.
Para melhor combatê-la e obter neste combate o apoio do povo, faziam crer também que era um movimento anti-republicano pela restauração da monarquia. Porque monarquia representava escravidão, atraso, obscurecimento, o que devia ser degradante para o povo, contra aspirações populares de liberdade e progresso.
Com efeito, analisando os jornais da época, os relatórios militares e as correspondências havidas e recolhidas então, constata-se esse estado de animosidade da classe dominante contra os jagunços.
Pelo menos, dois livros reúnem notável número desses escritos: um é a tese de livre-docência de Walnice Nogueira Galvão, submetida em julgamento no ano de 1972, e logo após publicada pela Atica, SP, sob o título No calor da hora ; o outro é a recente publicação da Editora da Universidade de São Paulo – EDUSP, dada em 1999, organizado por Consuelo Novais Sampaio, intitulado Canudos – cartas para o barão.
Analisemos alguns textos.
Sabia-se que Antonio Conselheiro era um homem razoavelmente letrado e que escrevia com certa correção, como se pode verificar nos autógrafos, inclusive carta que o Instituto Histórico e Geográfico da Bahia possui. Os trechos em seguida fazem parte de um texto que é evidentemente uma paródia e faz, ademais, uma série de comentários jocosos sobre a Guerra de Canudos e sobre meandros da política central que nem poderiam ser do conhecimento do líder sertanejo. Trata-se do Manifesto do Antonio Conselheiro, publicado no jornal A Notícia, do Rio de Janeiro, na seção Caleidoscópio, em 1897, coletado por Walnice Galvão em No calor da hora. Lendo-o, percebe-se hoje que a intenção do autor era clara : ridicularizar Conselheiro, colocando-o sob a ótica da subversão e do atraso, da barbárie que não mais poderiam coexistir com o clima progressista da República recém-instaurada e com os anseios da classe dominante. Observemos alguns trechos e a grosseira tentativa de minimizar o chefe dos jagunços, no plano das idéias e na ortografia:
“Meus jagunçu queridu da minha arma. – Arresolvido cumo estou a butá abaixo esta república que é a mandinga desta terra das mata virge, venhu chamá ocês tudo as arma promode enchê us claro qu’as força do governo abriu na minha gente. Ocês são testimunha que eu estava aqui bem sucegado cumprindo a missão que Deus me deu de sarvá as arma dos fié da verdadeira religião de Jesus e fazendo o pussuvi promode enchê de benefiçu esta terra amardiçoada, mas os republicanu intendeu que o Brasi é só dos eregi ( ...) ”
“Jagunçada minha, vamu recebê a tiru essa cambada di eregi mandada plu diabo si mascarandi-se de republicanu pra inganá us tolo e pençandu que os outro são burro. Iche ! Si o Bom Jesus, figurado e incarnado em eu vencê essa bataia tudo quanto é jagunço das arredondeza Qui tivé pegado nas arma santa com fé vai direitinho pru céu nu momentu fatá da morte (...)”
“As arma! Purtanto. Corra tudo pra defendê a santa missão de Deus contra esses sugeitos que botaru o cambiu numa pindaiba dus diabo desdi que o imperadô foi inxotadu da sua terra natá onde canta us sabiá (...) Os republicanus queren é si inchê bem pra gozá o mundo com as muié. Pur isso é que eu digu pra trazê as muié cá pru arraia onde mais antis cuzinhá e trabaiá pra nois du que sê agarrada plus eregi, cujos tem o diabo no corpo. Aqui ellas não ganha dinhero mas ganha a graça de Deus si trabaia tudo bem trabaiadinho i sem pedi ordenado coisa que por aqui não há. Louvado seja Nosso Sinhô que paga mió que quarquê capitalista das cidades (...)”
Ainda em No calor da hora, Walnice Galvão fala de textos apócrifos ou possivelmente apócrifos. Um exemplo é o que aparece no jornal Diário de Notícias, da Bahia, edição de 22 de setembro de 1897, na primeira página. É o Credo de Antonio Conselheiro, texto elaborado, novamente, com a explícita intenção de jogar Conselheiro contra a República. Notemos :
“Creio no Sr. D. Pedro segundo, ex-imperador e defensor perpétuo do Brasil, criador da constituição monárquica do Império, do Exército e da Armada que o depuseram; creio na Princesa D. Isabel que é a sua filha e legítima herdeira da coroa, que casou-se com o Sr. Conde D’Eu, que nasceu no Rio de Janeiro e foi dali banida com seu velho pai, padecendo este e todos seus sob o poder da malvada República, representada pelo governo provisório de Deodoro da Fonseca; que o velho monarca morreu apaixonado na Europa, onde foi sepultado, por ser obrigado a abandonar o Brasil e seus caros filhos, descendo o país ao pântano da miséria, donde ressurgirá em breve com a restauração da Monarquia, subindo ao trono a aludida princesa, onde permanecerá assentada à mão direita de seu marido, que se tornará poderoso e donde há de vir a julgar todas as obras daqueles hereges e conspiradores republicanos que tanto concorreram para a perdição do país; creio na coragem e fidelidade dos meus jagunços, na sua ressurreição, na vitória alcançada por João Abade e Macambira, na restauração da Monarquia e na vida eterna dos meus sonhos. Amém.”
A defesa da propriedade fundiária estava no grito de luta que uniu todos os setores das classes dominantes na guerra contra Canudos. A campanha de formação de opinião pública era implacável, mesmo após o final da guerra. GALVÃO (1994 : 95) diz a respeito:
Se, para o General Artur Oscar, em carta que enviou ao República e que saiu na edição de 9 de setembro de 1897, os rebeldes de Canudos eram “estes miseráveis e sórdidos jagunços”; se, para o autor do soneto comemorativo da vitória, dedicado ao soldado brasileiro, intitulado Anônimo sublime, que saiu n’O República de 13 de outubro de 1897, Antonio Conselheiro era um “mísero embusteiro” e seus homens uma “cáfila assassina”; se o telegrama que a deputação federal baiana enviou ao governador da Bahia, e que foi estampado na primeira página da Segunda edição d’A Notícia em 7/8 de outubro, congratula-se pela “completa destruição de Canudos, baluarte de bandidos e fanáticos, atentado à ordem legal e instituições”; e se, em discurso comemorativo publicado na mesma página, o Presidente da República fala “desses fanáticos aglomerados junto a um velho mentecapto talvez” e declara biblicamente que “em Canudos não ficará pedra sobre pedra”, não é dos intelectuais que devemos esperar uma linguagem diferente.
Com efeito, os intelectuais, representados em grande parte pelos acadêmicos baianos, terminariam um manifesto publicado em Gazeta de Notícias, meses antes do fim da guerra, precisamente no dia 1º de abril de 1897, da seguinte forma : “O fanatismo rebelado em Canudos é uma nódoa, uma vergonha que cumpre extinguir de pronto e por completo (...)”
E durante a guerra, a campanha movida pelas classes dominantes mostrava-se acirrada. Era necessário que, a todo custo, a opinião pública nacional da época e o juízo crítico futuro da História tivessem uma única leitura quanto à rebelião armada em Canudos : Conselheiro e sua gente formavam uma horda posicionada na contramão da modernidade, indo de encontro aos anseios da República, esta, sim, manifestação do progresso, do avanço, da linha de frente do concerto nacional de suas unidades federativas.
A classe dominante brasileira de então asseverava que os conselheiristas não cogitavam apenas em restaurar a Monarquia. Nutriam, também, a pretensão de se conservarem independentes, livres de toda a ação governamental. Não pensavam em destruir sistematicamente a República, regime que não compreendiam. As autoridades supunham que os jagunços teriam da República uma limitadíssima idéia, e que se conhecessem alguma coisa de socialmente útil, essa coisa não ultrapassaria a dimensão da estreita região agreste, quase bárbara, onde assentavam seus arraiais. Julgavam mais : que o fanatismo rebelado em Canudos conservava-se no interior da Bahia, de forma obstinada, à espera de uma inevitável destruição – o aniquilamento inexorável de um povo fraco por um povo forte, conforme nos diz Euclides da Cunha – que iria, mais cedo ou mais tarde, realizar-se para desagravo da civilização brasileira e da honra de seu Exército, gravemente ofendida pelas desastrosas conseqüências das mortes infelizes de seus soldados e de seus mais ilustres oficiais.
“O fanatismo rebelado em Canudos é uma nódoa, uma vergonha, que cumpre extinguir de pronto e por completo.” Tal era o espírito que movia a classe dominante.
Um outro livro que nos leva a entender melhor esse medo e reação da classe dominante diante do episódio dos conselheiristas intitula-se Canudos – cartas para o barão, organizado por Consuelo Novais Sampaio, publicado pela Editora da Universidade de São Paulo –EDUSP, primeira edição em 1999. Este livro reúne 70 cartas que compõem uma pequena parte do arquivo privado do barão de Jeremoabo.
Este ilustre político, de nome Cícero Dantas Martins, foi um dos mais ativos e combativos homens públicos da Bahia. Durante a campanha de Canudos, era ele dono de 61 fazendas (59 na Bahia e 2 em Sergipe), tendo sido, possivelmente, o maior proprietário rural dos sertões. Exercia o hábito de a todos ouvir e atender, procurando conciliar divergências e coordenar interesses pessoais. As cartas e documentos que constituem o seu arquivo testemunham suas múltiplas atividades e sua insofismável liderança política.
Mantinha correspondência ativa com todos os amigos. E esses amigos eram, em sua grande maioria, proprietários rurais e homens públicos. Daí, a leitura e a análise do teor dessa correspondência havida na época do conflito podem proporcionar uma avaliação mais precisa do pensamento da classe dirigente local e da sociedade sertaneja em geral.
Selecionei trechos significativos de 10 cartas. O conjunto desses trechos leva à compreensão do sentimento dessa parcela da classe dominante em relação aos conselheiristas. Notemos :
“ (...) Seguiu daqui e destas imediações esta semana para o Conselheiro umas 16 a 20 famílias, é um horror !! ... (...)” Carta do tenente-coronel Marcelino Pereira Miranda, 12 de janeiro de 1894.
“(...) O Antônio Conselheiro continua a ser o motivo da saída de muita gente daqui, e outros pontos, que ameaça ficarão despovoados. O êxodo agora de nossa gente é grande e o Governador não pode agora tomar providências, que são urgentes. Compreendo que, quando a miséria, que já começa a manifestar-se em Canudos, tomar proporções maiores, os roubos e assassinatos serão a conseqüência do pouco caso com que se olha para os primeiros atos daqueles monomaníacos. Quem for fazendeiro nas proximidades de Belo Monte (assim se chamam hoje os Canudos) há de pagar o descuido e a negligência dos que nos governam (...)” Carta do coronel Aristides da Costa Borges, deputado estadual, 9 de fevereiro de 1894.
“(...) Ontem fomos surpreendidos com a aparição de dezessete sicários do Antonio Conselheiro, armados até os dentes; demoraram pouco e seguiram para os lados daí; a notícia que correu foi que iam em busca de um portador que foi levar uma musica no Riacho e não voltou mais, tendo trazido alguns animais. Principiam as correrias, em breve os roubos e desrespeito às autoridades, e como repelir-se!!! “ Com uma só praça que tem no Pombal (...)” Carta do tenente-coronel Antonio Ferreira de Brito, 10 de fevereiro de 1894.
“(...) O Conselheiro está agora percorrendo as Vilas deste sertão e planta-nos sua lei, que ele é o Governo desta terra sem lei, pior governo. Ontem subiu com um pessoal imenso, e tendo raspado esta terra aos vinténs que tinha e tudo mais, o povo dando e pedindo esmola. Pessoas que nunca julguei acompanhá-lo seguiram com ele. O Conselheiro tornou a voltar pelo Monte Santo, Tucano, Pombal e fazer sua volta por aqui carregando madeira, carregando o povo, e os últimos recursos e plantando sua lei, sem Ter embaraço, pois não houve, não há, e nem haverá governo!!! Estamos derrotados neste sertão, Sr. Barão, não me retiro porque estou feito defunto, é quanto basta dizer-lhe (...)” Carta do coronel José Américo Camelo de Sousa Velho, proprietário rural, 2 de janeiro de 1896.
“(...) Estamos ameaçados agora da visita do Conselheiro, e era o que nos estava faltando por aqui !... Ontem chegou ao Juazeiro uma força de 100 prças do 9º, requisitada pelo juiz de direito e comércio. A população está alarmada, e algumas pessoas já se mudando. Consta que vem a pretexto de levar um taboado para uma igreja que está fazendo. Além da carestia dos gêneros que já é excessiva, ainda mais esta (...)” Carta do coronel Francisco Martins Duarte, 8 de novembro de 1896.
“(...) A expedição dos Canudos oferece séria dificuldade por causa das distâncias, e só terá bom êxito se a força for numerosa e bem comandada. A loucura de mandar cem homens já deu os resultados conhecidos, retornando aqui setenta soldados em mísero estado. Consta que já tem havido nos Canudos crimes bárbaros. Avalie o que se sucederá se a força conseguir bater os adeptos do Conselheiro. Dispersos em grupos começarão em larga escala as mortes, roubos etc. Tudo isto por não se ter operado em tempo. Deus nos dê tranqüilidade.” Carta do bacharel Benigno Dantas, proprietário rural, 5 de dezembro de 1896.
“(...) Como vai o célebre Conselheiro? Daqui tem seguido para desbaratar este fanático e seu povo muita tropa e munições. Já foram uns quatrocentos soldados, que vão ser comandados pelo capitão Salvador. Eles contam, depois de algumas escaramuças, assediar aqueles pobres-diabos nos Canudos para arrasá-los com a artilharia. É possível que desta vez liquidem a questão, embora com grandes sacrifícios e dispêndios, quando de há muito já poderiam tê-lo feito sem maiores dificuldades. O que sei é que eu serei o mais prejudicado, pois com certeza na nossa fazenda não deixarão pedra sobre pedra(...)” Carta do juiz federal Paulo Martins Fontes, proprietário rural, 12 de dezembro de 1896.
“(...) Escrevi-lhe por seu pai e não tenho carta sua a que devo resposta. Meu irmão, portador da presente, é carta viva e lhe dirá os dias amargurados e aflitivos por que temos passado, receando, a todo momento, ser esta vila invadida e saqueada pelos sicários de Antonio Conselheiro e seus habitantes trucidados. O sobressalto é geral e estamos de sobreaviso para retirarmo-nos logo que chegue qualquer notícia desagradável. Quem pensaria que este maníaco ou perverso fosse tão funesto? Quanto sangue derramado somente pela incúria do governo que, apesar de avisado, não preveniu em tempo o mal. Que complicação não trará ainda este negócio, que cada vez vai mais se complicando. Deus se compadeça de nós(...)” Carta do Dr. Reginaldo Alves de Melo, proprietário rural, 18 de março de 1897.
“(...) Não acredito no extermínio completo dos bandidos que não oferecem combate, limitam-se a guerrilhar, o que torna quase impossível uma ação completa. Entretanto, parece que há desânimo entre eles, que têm emigrado em grande número. Deus proteja a nossa causa. Tenho lido com cuidado o que há sobre política, e quer me parecer que os governantes naufragam na luta(...)” Carta do coronel Aristides Costa Borges, 20 de julho de 1897.
“(...) Peço-lhe e dou minhas alvíssaras pela morte do monstro horroroso do Brasil, Antônio Maciel; assim como dos seus maiores confidentes, Macambira, Norberto, Manuel Franco, que levaram com o monstro três dias esperando sua ressuscitação, desenganados deram sepultura em uma rasa cova. Os jagunços estão se reunindo nas caatingas e dizendo que o infeliz tem de ressuscitar para vir mostrar que é Deus. Já vi portanto que o fanatismo ainda não se acabou destes malvados, e ficam sem serem perseguidos nestes pontos onde estão muito pior (...) Este fim deveria deixar tudo liquidado e findo (...)” Carta do coronel José Américo Camelo Sousa Velho, 15 de outubro de 1897.
Os trechos aqui selecionados foram extraídos de cartas que abrangeram, basicamente, o período de 1894 e 1897 e estão dispostos em ordem cronológica. São contemporâneas da guerra de Canudos. Seus remetentes pertenciam à elite política, militar e mesmo ruralista.
Nota-se, por sua leitura – e há de se dizer que as outras sessenta cartas publicadas no citado livro apresentam o mesmo teor – um medo coletivo que tomou conta daqueles ilustres membros da classe dominante.
O exame dessas cartas sugere que a questão de Canudos se agravou em relação direta ao acirramento da disputa pelo poder entre grupos oligárquicos, tanto no plano nacional, como no estadual e municipal.
Fica claro que essa parcela da classe dominante não ajudou a construir ou proteger Canudos, mas a destruir, expugnar , exterminar Canudos, de modo a não restar “pedra sobre pedra”.
Eles sentiam medo, mas não um medo costumeiro. Quando as populações sertanejas vivem o medo das secas prolongadas, das doenças de toda espécie, das arbitrariedades da força policial, das punições da Igreja Católica, das devastações do banditismo etc., eles estão, em verdade, exercitando mecanismos que desenvolveram para administrar esses diversos medos. É o medo cotidiano, é o medo costumeiro.
Analisando o medo das classes dominantes em face de Canudos, pode-se inferir que este medo foi um medo construído, com um determinado fim.
A hipótese não é nossa. É de Consuelo Novais Sampaio, que organizou o livro Canudos – cartas para o barão.
Diz SAMPAIO (1999 : 32) :
O medo que destruiu Canudos foi um medo diferente. Em contraste com esses medos, foi um medo construído, não só pelas facções políticas em luta mas, principalmente, pela Igreja Católica e pelo Exército. A imprensa (grande e pequena) encarregou-se de recriar e de espalhar esse medo que, de boca em boca, foi impregnando os brasileiros, até atingir o paroxismo da perversidade, após a fragorosa derrota da terceira expedição militar (...)
Ao contrário do que ocorreu nas revoluções e rebeliões estudadas por aqueles renomados historiadores franceses, as quais promoveram mudanças estruturais e imprimiram avanços no processo histórico, o medo que destruiu Canudos não surgiu das camadas populares nem impeliu o progresso. O medo de Canudos foi um medo construído pelos de cima, com o propósito de enfraquecer e mesmo aniquilar forças adversárias, numa cruenta disputa pelo poder político no interior de uma mesma classe social.
É interessante notar que após a guerra, aquele medo construído provocou esturpor, impôs uma trégua na disputa entre as facções políticas rivais e no confronto entre o militarismo, dominante nos primeiros anos da República, e o civilismo, que procurava se impor. Quando se dissipou, teve um efeito paralisante e mesmo retrógrado. O statu quo das classes dominantes foi preservado e os campesinos sem posse foram contidos, voltando ao quietismo que lhes havia sido reservado pela elite. Ou seja, Canudos, que representava uma reação coletiva dos sem-terra, foi exterminada, física e ideologicamente.
O líder dos jagunços não poderia ficar impune a essa estratégia do sistema. Antonio Conselheiro foi vítima das mais torpes manipulações políticas de todos os plnos do poder. Durante a Campanha, o vice-presidente da República em exercício, Manuel Vitorino, conseguiu dar concretude ao fantasma da restauração monárquica, manipulando a figura carismática de Conselheiro. E ao reassumir o seu posto, no mesmo dia em que o coronel Moreira César caía fulminado no campo de luta (4 de março de 1897), Prudente de Morais valeu-se do mesmo recurso e convocou todas as forças do país para aniquilar Canudos. Dessa forma, o medo construído atingiu o auge e a já combalida comunidade sertaneja foir exterminada para a satisfação de interesses personalistas e imediatos.
Esse medo construído, tão bem percebido e enfocado por Consuelo Novais Sampaio, terminou por desembocar no grande medo que cobriu de sngue e cinzas as terras do sertão baiano.
E quais eram os ingredientes desse medo ?
-o fantasma da restauração monárquica;
- o fantasma das fazendas destruídas.
A idéia propalada de restauração monárquica serviu aos interesses políticos da esfera federal; a idéia das fazendas destruídas manifestou-se na região da guerra, no interior da Bahia, mas serviu também de elemento aglutinador das classes dominantes.
E fica, aí, clara uma outra visão do conflito nas respostas a uma questão específica : por quê jagunços e classes dominantes se combatiam ?
Os jagunços combatiam as classes dominantes , antes de tudo, em defesa de sua própria sobrevivência; e, de uma forma espontânea, não consciente, contra a secular opressão latifundiária.
As classes dominantes combatiam os jagunços pela manutenção do statu quo (a República e seus segmentos políticos e ideológicos) e pela preservação da grande propriedade latifundiária, a maioria imensos latifúndios, maiores que alguns países europeus.
Em relação a esse jogo de interesses, SAMPAIO (1999 : 77) manifesta sua opinião :
A Guerra de Canudos não foi apenas mais um capítulo da história do Brasil. Ela revela com precisão a grande distância que, neste país, sempre separou – e no limiar do século XXI ainda separa – o “povo miúdo” , a classe pobre e miserável , das classes dominantes. Em todos os níveis de tomada de decisão, o movimento conselheirista foi manipulado para a satisfação de interesses pessoais e de grupos políticos em luta pelo poder (...)
O medo construído resultara em uma das mais dramáticas destruições da história do Brasil. A ele se seguiu um quietismo constrangedor, quase absoluto. No sertão, o medo costumeiro passou novamente a primeiro plano, com a deterioração das já precárias condições sanitárias, a incidência crescente de doenças mortais, a seca avassaladora e as costumeiras perseguições políticas.
Já se disse que quem manipula o poder manipula também o esquecimento. Sabemos que hoje Canudos são ruínas que jazem no fundo de uma represa. E é curioso saber que a construção do açude de Cocorobó, que inundaria irremediavelmente Canudos, tenha ocorrido no ano de 1969, quando o Brasil vivia o auge da repressão do regime militar, o mesmo regime que aponto na Introdução desta dissertação.
E o homem do sertão ?
O homem do sertão continua à espera de quem lhe aponte o caminho da esperança e da redenção.
Pelo exposto neste capítulo, creio em ter ficado clara a idéia da exclusão social dos conselheiristas e o olhar da classe dominante sobre esses pobres do campo : OS JAGUNÇOS ERAM SUJEITOS A EXTERMINAR.
Fechemos esta parte com Euclides DA CUNHA (1973:392) :
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História. Resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas : um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo, Cultrix : 1971.
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. 2.ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira : 1965.
GALVÃO, Walnice Nogueira. No calor da hora. 3.ed. São Paulo, Ática : 1994.
SAMPAIO, Consuelo Novais (org.). Canudos – cartas para o Barão. São Paulo, Edusp : 1999.

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